Severino sempre gostou de uma cachaça. Todo dia, sua mulher, uma quase santa por suportar tamanho tribufu como seu marido, dizia que, um dia, ele ia beber tanto, tanto, que ia bater a caçuleta sem nem tugir, nem pigarrear, nem coisa e tal. Nem terminava de cantar essa ladainha que já era repeteco de todo santo dia e lá estava Severino brindando tamanha gentileza da patroa com algum espírito oculto nos ares domésticos. Era mesmo um debochado.
- Bote um bridão na língua, mulher, porque os santos vão na frente.
E ela logo respondia:
- Pois se for, me bote num capote de madeira, pois não sou umazinha para divertir bicho de terra.
E, então, o pior aconteceu. No sábado, logo após a missa, a santa mulher resolveu quebrar a economia doméstica e apelar para um chamativo espeto de camarão, na feira da praça. Nem piscou e logo já havia gente oferecendo um segundo e ela embarcou, toda satisfeita. Que mal haveria, depois da missa, com Severino no bar ali pertinho, ela petiscar aquela coisa que só via nos filmes de tevê? Por certo, nada. Apesar das más línguas que diziam: “camarão no sertão é danação; quem quiser vá à praia e coma até com colher”.
O diabo, no entanto, naquele dia estava com a porteira escancarada e não é que a pobre mulher enrodilhou as tripas, deu nó, empacou, encriquiou, e caiu de vez na enxerga que, de tão arrumada, prenunciava coisa ruim!
E o finalmente foi lúgubre: no bater do sino do terço noturno, a pobre mulher estava decretada mais uma vítima de camarão que estufara a barriga da infeliz até mais não poder.
Severino, cumprindo o ritual de todo cabra macho, em vez de beber uma, bebeu muitas, e lá foi ziguezagueando pela estrada, em sua caminhoneta mambembe, até o distrito, para buscar um caixão. Entre a terceira e quarta garrafa, entendeu que não era uma caixão, mas uma urna funerária, como bem frisava o esperto vendedor. Uma u-r-n-a: negócio xique!
- Caixão é negócio pra pobre. Feito de madeira podre. Gente de boa fibra encontra Deus numa urna.
Feliz da vida por ter comprado em dez pagamentos a tal urna envernizada, Severino tomou o rumo de casa, levando o triste objeto na carroceria, depois de se despedir da última garrafa.
Na metade do trajeto, segurando os olhos para não fechar, viu um bode bonitão sobre o lajedo, sorridente. Pensou:
- Ele ali, tão feliz, e eu aqui, lascado que nem Adão expulso do paraíso.
Nem bem pensou, um carcará saiu do nada, deu uma rasante, o bode deu um pulo, bateu o espinhaço, rolou, caiu na estrada na frente do veículo e catapumba! - uma bela chacoalhada e tudo parou: o bode parecia mortinho da silva.
Severino matutou:
- Isso é azar duplo.
Achegou-se, cheirou o mal-cheiroso, viu que respirava e, então, teve a idéia genial de tentar salvar ao menos um defunto nesse dia tenebroso. Colocou o brutamontes dentro do caixão, fechou a tampa, e seguiu viagem.
Meia hora de poeira depois, garganta seca, parou no boteco do Zeca, pediu logo duas garrafas, pagou para todo mundo, todo mundo queria pagar para ele - pelo menos nessa ocasião funérea. Mais meia hora e campeava um porre geral.
Foi aí que um dos bêbados saiu e voltou com a notícia:
- Ô xente, Severino comprou um caixão lindão pra mulher.
Todo mundo desandou para ver o notável objeto e Severino, cheio de orgulho, abriu o discurso:
- Caixão uma ova! Isso aí é uma urna. Uma u-r-n-a, das boas, madeira de lei, e coisa e tal, pois a patroa bem merecia.
- Pôxa, se achou dinheiro para esse xiquê de fora, como não será o xiquê de dentro? - perguntou o baixote de olho apagado.
E saíram todos os vinte - menos Severino que estava abraçado à última garrafa da noite - para abrir o esquife, para ver o veludo, o cetim, os estofados, o travesseiro, o cheiro gostoso e tudo aquilo que os defuntos só ganham quando não podem mais cheirar, nem apalpar, nem arranhar, nem nada!
Foi aí que, no ajeita-ajeita dos quatro trincos, surgiu um zumbido baixinho, lá de dentro. Parecia nada. Depois, virou um baforado. De repente, a tampa voa para os altos e salta um bode monstruoso, bufando de raiva, depois de horas de sacolejo e, agora, vendo aquele povaréu pronto para um linchamento. O bode ergueu-se nas patas, berrou para os céus, e sacudia-se todo, bem espantado.
Foi um corre-corre, um deus-nos-acuda. Onde já se viu bode em caixão de defunto?
Um dos bêbados, chegou-se a Severino:
- Ô homem, você sabe quem veio buscar sua patroa?
Severino engoliu meia garrafa de uma talagada só, cheio de tristeza, e soltou um fiozinho de voz:
- Pois é claro que sei. É um anjo de Deus.
Publicado no Be 99
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