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Ladino pregador de seixo

- 01/09/2005

 
 Zé queria aumentar e melhorar seu rebanho de ovinos, mas o dinheiro andava curto. E, nas suas contas, mais doze marrãs boas fariam uma enorme diferença... e o único jeito para ele era meter a mão na cumbuca do alheio, ou melhor, no curral de alguém. Só que ele queria coisa boa. Não queria qualquer miúnça não. Tinha que ser das melhores.
Bichinhas boas, vistosas, gordinhas, e até campeãs de pista quem tinha era o Cel. Salustino, fazendeiro no município um pouco além do vizinho. Mas, como tirar daquela imensa fazenda, cheia de peões, bem vigiada, uma caminhonete com o número dos apóstolos em ovelhas... sem pagar nada? Nadinha?
Dona Quiquinha, esposa do coronel, era devota de Santo Antônio e, todos os anos, preparava uma grande festa e todo o povoado era convidado, além de autoridades, políticos, delegados e o quê mais da região.
Zé, então, se arrumou com boas roupas, algumas até surrupiadas numa feira da capital, pegou a caminhonete e foi para a festa do Coronel.
Na fazenda do Coronel os automóveis iam chegando e encostando junto ao casarão. Quando tudo estava lotado, Zé pegou sua caminhonete e foi esta­cio­nar mais longe, pertinho do aprisco. Gentileza pura, para dar lugar às autoridades que iam chegando.
Os empregados serviam e comiam churrasco, alternando “cana” com carne, numa grande distração. Enquanto isso, Zé ia colocando as melhores marrãs na caminhonete, onde havia ração e capim cheiroso no fundo. Por isso, elas nem se importavam e iam se aboletando. Quando as doze foram escolhidas, chegara o momento de começar o segundo ato e Zé levou a caminhonete até o casarão e chamou o Coronel, que surgiu vermelho-pimentão, franzindo a testa para enxergar quem estava atrapalhando sua festança.
- Coronel, estas ovelhas que comprei do senhor não pegam cria. Estão com defeito e, então, vim trocar.
O coronel não gostou de ouvir falar que seus animais não prestavam, e fechou a carranca. Afinal todos sa­biam que ali era o celeiro dos campeões e foi logo protestando, temperado pela inspiração alcoólica:
- Olha aqui, seu moço, eu não vendo animais com defeito, não!
Zangado, o coronel se encostou na caminhonete e viu as marrãs. Ele se encantou com a qualidade, todas gordinhas, até pareciam suas! E logo pensou: “se fossem minhas, não venderia nunca”!
Mas o pilantroso Zé insistia:
- Olha, coronel, gastei um bom dinheiro e agora as bichinhas não prestam para nada! Chamei o veterinário, já dei todos os remédios e... não tem jeito: elas não emprenham. O senhor me devolve o dinheiro e eu devolvo a mercadoria. Ou vamos escolher outras.
Gente foi se achegando, o coronel roçava o cabo da peixeira, a raiva espumava ao meio-dia, e todo mundo queria saber como ia terminar aquele desaforo. Foi aí que o coronel se zangou:
- Olha aqui, ô atrevido, nem meu avô, nem o bisavô, nem ninguém desta casa jamais vendeu gato por lebre! É muito desaforo da parte de vosmecê vir estragar a minha festa, no dia do nosso santo. Ôxa, tá jogando na minha cara que eu sou homem de enganação, de passar seixo?
A turba formou a roda, alguém podia morrer, o sangue podia rolar, a festa ia esquentar com certeza. O ladino Zé, todavia, era cabra escolado nas ma­lazartices da vida, mais escorregadio que pau-de-sebo e foi logo tocando brasa na fogueira:
- Coronel, tenho a maior estima por seu clã, mas eu também sou homem honrado e não gosto de me sentir lesado, não! Se alguém passou seixo, não fui eu! Meus empregados compraram essa porcaria e eu estou no direito de trocar. E, para provar o meu acerto, trouxe até a Nota Fiscal que foi entregue para os meus empregados.
E, num grande teatro, balançava a tal Nota Fiscal bem pertinho da cara do coronel. Isso era demais. A peixeira esquentou na cintura do coronel, ele engatou os dedos no cabo, ia puxar, sangue ia esguichar no terreiro, quando - num último olhar - para pedir perdão a Deus, o coronel fixou bem os olhos vermelhos de raiva no papel. Arregalou os olhos, mais, mais, mais, mais, e soltou um grito:
- Epa! Tem treta aqui.
Zé, diabolicamente, esperava por esse momento, e mudou de bravo para manso, num piscar de olho. O coronel vociferou, com voz de urso:
- Mas que diabo, homem, esta Nota Fiscal não é da minha fazenda. O nome até é o mesmo, mas esta outra - olha só! - esta fica em Cabriolé. Não é daqui, homem! Você está na fazenda errada, sem educação, e ainda estragando uma festa de gente honrada.
O coitado do Zé apequenou-se, amiudou-se, afundou-se no sapato, ficou minúsculo, olhando apalermado o papel:
- Mas não é que é mesmo? Ai, meu Deus!
E Zé pediu desculpas, mais desculpas, para a direita, para a esquerda, cheio de mesuras, e foi saindo de fininho:
- Eu bem sabia que o coronel nunca iria vender gato por lebre. Ôxa, como fui burro!
O coronel, por sua vez, olhou as marrãs gordinhas, pela última vez, e desabafou:
- Pois é, lindinhas por fora, mas estragadas por dentro. Quem diria! Pois, seu Zé, vá procurar quem lhe pregou o seixo em outro lugar. E já!
Zé abaixou a cabeça, montou na caminhoneta e disparou, como se fosse trocar a mercadoria seixelenta em outro lugar.
 
Publicado no Be 81





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