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O dia em que Dorotéia engoliu a agulha

- 04/07/2012

Era um domingo, dia de descanso, mas o médico-veterinário foi acordado com uma zoada na porta. Era Seu Tonho, marido de Dona Zefa, de um sítio muito longe, nas grotas.

- Doutor, por favor, venha logo, Dorotéia engoliu uma agulha. O que que eu faço?

Depois de saber que Dorotéia não era nenhuma moça, nem donzela, mas apenas a ovelha de estimação de Dona Zefa, o veterinário nem tomou café e saiu correndo para apagar o incêndio, mesmo sem ter água, pois como diabos pode alguém pensar que, um dia, uma ovelha poderia engolir uma agulha?

Finalmente, chegou no sítio e lá estava a ovelha Dorotéia, tranquila, serena, sem entender nada de tamanha correria.

- É essa?

- Ela mesmo, seu doutor!

O médico olhou, olhou, viu que estava na chuva para se molhar e, então, começou clinicando: examinou a boca, língua, esôfago - nada de agulha, nada de ferimentos, nenhuma gota de sangue, nada! Fez um muxoxo de desaprovação, franziu as sobrancelhas, contraiu a testa, coçou a cabeça, e escutou a explicação de Dona Zefa:

- Mas, doutor, eu vi quando a santinha engoliu a agulha. Foi assim: eu estava trabalhando na minha costura, quando a agulha caiu no chão, com um pedaço de linha vermelha ainda enfiada. A Dorotéia veio, cheirou, cheirou, lambeu a linha e acabou engolindo tudo, antes de eu conseguir apanhar. Quem podia imaginar que ia engolir uma agulha?

- E como é que a senhora sabe que ela engoliu, mesmo?

- Uai, não sobrou nem a linha vermelha no chão. Então, engoliu tudo junto.

Acreditando na mulher e supondo o pior, ou seja, que a dita agulha estaria muito bem espetada em algum lugar no bucho do animal, talvez fosse bom buscar um médico-veterinário-gastroenterologista, para fazer algum milagre. Mas onde achar um especialista na extração de agulha dos bofes de um animal naquele cafundó?

Tomou mais uns três cafezinhos; achou melhor não apalpar mais nenhum lugar do animal, pois - de repente - iria acabar espetando ainda mais a agulha. Então, deu o veredito:

- Bom! Só tem um jeito: é arriscar uma operação das bem fedorentas.

Ninguém entendeu, mas todo mundo sabia que o doutor devia saber o que estava falando. Ele puxou um bloco de papel, anotou umas coisas e despachou o vaqueiro:

- Agora é com com você e suas pernas. Seja ligeiro. Vá até o hospital do povoado e compre o que está aqui: duas ampolinhas de a-po-mor-fi-na, para provocar vômito num animal.

Nem bem acabou de falar e a poeira levantou-se no terreiro, disparando a dupla pela porteira. Num vape-vupe e mais alguns cafés, eis que o cavalo ido no galope já estava coltando no trote. Montado, o remédio nas mãos e uma enorme alegria na cara do vaqueiro, que se sentia o verdadeiro herói do domingo.

O veterinário pegou o remédio, chamou mais gente, agarraram Dorotéia, seguraram a cabeça inclinada e enfiaram o remédio goela abaixo. Ficaram segurando a coitada, com a boca escancarada:

- É o jeito, num já-já-já ela vai vomitar e a gente tem que pegar a linha vermelha, antes de ela engolir de novo.

Dorotéia deu uns repuxos, tentou vencer a turba que estava agarrada, mas não teve jeito, acabou ficando vermelha, vermelha, com tanta raiva que foi subindo pelo espinhaço, chegou no pescoço, subiu pela goela e acabou numa tosse, outra tosse, mais outra, e veio uma enorme convulsão, lançando um oceano de vômito esverdeado, misturando suas últimas comilanças, num cheiro de matar defunto fresco. De repente, o doutor gritou:

- Ali, a linha vermelha!

Meteu a mão na boca de Dorotéia, lambrecando-se todo, mas agarrou a linha vermelha. Enrolou no dedo melado, fez alguma força, tentando puxar a agulha, até ouvir um “trach”.

- Xiiiiii! Acho que a agulha se partiu no esôfago de Dorotéia.

Nas puxadelas, o animal corcoveava, sacudia, vomitava, gargarejava, roncava, numa cena de fazer dó.

O doutor continuou puxando, devagarzinho, e eis que algo brilha:

- É a agulha, mesmo! E está inteirinha!

Vendo o final da tragédia, Dona Zefa ajoelhou-se, agradeceu ao Padim Ciço, enrodilhou os braços nas pernas do médico, festejando:

- Doutor, o senhor é mesmo um Deus!

O veterinário não sabia o que fazer, com a mulher enrolada em suas pernas e Seu Tonho sorridente, sem se importar com essa demonstração exagerada de agradecimento.

- Dorotéia vai ficar boa, não vai, seu doutor?

- Tá, tá, tá. Vai ficar muito boa. Agora, é só dar sulfa de 6 em 6 horas. E só comida leve. Segure a ovelha na sopinha por 3 dias. Nada de ração, milho, coisa dura.

- E como lhe pagar, doutor?

O veterinário pensou, pensou, pensou, e respondeu:

- Me arranje uma toalha seca, que eu vou tomar um banho no açude, e tirar essa fedentina, porque médico vomitado não é boa coisa em lugar algum do mundo.

 

Fonte: Baseado em Pereira, Edson, “O galinhista”, Goiânia, 2010, Funape, IPTESP - pág. 37.






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