Cabroeira era um povoado pequeno, mas com muitos orgulhos: tinha o melhor time de futebol das domingueiras; tinha o melhor forró de São João; tinha a melhor procissão da Paixão; tinha a melhor romaria para Canindé. Era um povoado feliz com seu passado, presente e futuro e, para completar, tinha o melhor churrasquinho de praça, feito de legítima carne de cabrito do mais legítimo sertão.
Outra coisa não havia na cidade, nem no hotel de Zefa, nem na feira, nem nos dois quiosques perto da igreja, a não ser nas cadeiras de Suetônio, espalhadas pela calçada suja na praça central. Era ali que todos faziam negócios de cabras e ovelhas, de romances e casórios. Afinal, quem poderia resistir ao cheiro delicioso da carne de cabrito-na-brasa do mestre Sué?
Quando chegava alguém, o lugar de parada era ali. Os hóspedes de Zefa gastavam parte da noite, bebericando e comendo ali; até o vigário, quando aparecia, assinava o ponto, conversando coisas longe do altar, aproveitando para saber tudo onde tudo era sabido.
Todos conheciam Sué desde menino e seu churrasquinho foi herdado do pai que talvez tenha herdado do avô. Alguns tentaram compreender o segredo: devia ser algum amaciante misterioso? Alguma erva desconhecida? Algum sal misturado? Algum vinho catingueiro misturado, talvez jurubeba braba? O certo é que ninguém descobriu e ninguém se importou.
Acontece que chegou o ano 2000, ano de grandes mudanças para o mundo que estava profetizado de se acabar, e não se acabara! Cabroeira até cresceu, ganhou um novo bar, bem na frente de Suetônio, no outro lado da praça, bem na cara! Era sinal de desavença na certa.
No fim de todo santo dia, Sué botava as cadeiras, mas o deslavado novato também colocava. Os pouco avisados acabavam frequentando o novato e saíam contando histórias fantasiosas sobre as malandragens de certos churrasquinhos. Sué entendia que era um desaforo para seu trabalho, mas preferia não comprar briga tão cedo e foi dando trela pro desalmado.
De repente, corria notícia de que um vulto encapuzado percorria as noites, nas sombras, quem seria? Todos queriam descobrir, mas nada. Pelas madrugadas, o vulto esgueirava-se pelos cantos da cidade. Foi aí que surgiu a notícia arrasadora:
- O famoso churrasquinho de Suetônio tinha mesmo sabença do maligno. Era carne desabençoada de cabritas que pastavam nas madrugadas de terça-feira, silenciosamente, dentro do cemitério. O tempero era a pimenta que vinha do outro lado, da escuridão da sepultura dos alheios.
A notícia correu e houve pânico. As mulheres, enraivecidas, marcharam para a praça, onde já havia muita gente, querendo satisfações. Seu Sué escapulia aqui e ali, mas logo chegavam mais e mais perguntas e o negócio foi ficando feio.
Para piorar, botando lenha na fogueira, o concorrente tomou a dianteira e foi taxativo:
- Eu mesmo vi. De noite. Segui as cabras na Lua Cheia. Elas foram, devagarzinho, por conta própria, pra dentro do cemitério. Por isso, a carne é saborosa. Tem parte com os defuntos de todos os santos e anjos ali enterrados. É carne benzida pelo Além.
A turba avançou para a bacia cheia de carne temperada, cheirou, cheirou, dedou, espetou, franzindo o nariz com desaprovação. Tinha cheiro de defunto? Ou de alma? Ninguém sabia, nem provava, mas as revoluções surgiram das dúvidas. Quando ninguém prova o contrário, então o errado é o certo, na sabedoria popular e muita gente já morreu por conta disso.
Seu Sué gaguejava:
- Minha gente, eu ronco com as galinhas a noite inteira. Nem sei se alguma cabra escapou ou se alguém deu escapatória a ela. Eu não vi, mas posso garantir que a carne é tão boa e sagrada como a de meu santo pai que também está lá no cemitério.
O certo é que todo mundo passou pro outro lado da praça, onde o novato sorridente, já via a fortuna chegando a galope. Todo mundo queria comentar o fato. O povoado estava em pé de guerra, pronto para massacrar o homem que, há pouco, era um dos mais queridos.
Então, aconteceu o que ninguém podia imaginar. No domingo, logo após a missa, o vigário que só visitava o lugarejo aos domingos, compareceu ao bar de Sué, sentou na cadeira, diante do olhar pasmo de todos os moradores. Seria um sacrilégio? O padre saboreou o churrasquinho, lambeu os beiços, limpou os dedos, para espanto da multidão.
Levantou-se, solenemente fez um sinal-da-cruz, vestiu a estola branca, passando por trás do pescoço, deixando-a cair lentamente pelo corpo, pegou o aspersório (vidrinho de água-benta) e falou:
- Minha gente, falei com o prefeito, outro dia. Ele vai consertar o muro do cemitério.
E agora, vou benzer o bar de Seu Sué, contra as almas penadas.
Dito e feito, foi rezando e espalhando água sobre carnes, linguiças, sarapatel, buchada, panelas e bacias. Tudo benzido, de alto a baixo, terminou em tom bíblico:
- E agora, minha gente, quem não for pecador, que jogue a primeira pedra. Posso garantir que as cabras de Seu Sué agiram na melhor das boas intenções e, se entraram no cemitério, foi por sugestão de Deus que está lá no céu. Se alguém quiser, jogue as pedras pra lá.
E apontava pro céu, para espanto do povo que foi se encostando, enquanto o esperto vigário arrematava com maestria:
- E agora, o churrasquinho corre por conta do amigo de vocês, seu velho amigo Sué. Comida e bebida de graça, até o meio-dia.
Foi uma festança regada a muita cachaça e a notícia correu como vento, chegando até a capital. Dizem as más línguas que o padre levou um puxão de orelhas, mas ele estava defendendo uma de suas ovelhas e devolveu a paz para todos. Por que não?
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