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Feliz Natal e um Prã³°ero Ano Novo!

As cabras do finado


Uma coisa é certa: todo mundo mor­ria de inveja. Alguém podia esconder a ama­relice, mas não tinha jeito, as ­cabras eram lindonas. Desfilavam aquela elegância altiva que Deus permitiu ­somente à raça caprina. Se todas as cabras são ca­prichosas e elegantes, então as três don­­docas do coronel Salustino eram dignas de testamento e monumento na praça principal.
Nunca nenhum mortal conseguiu di­zer qual das três era a mais bonita. Não ti­nha jeito, pois as três eram de fazer ba­­bar até quem se metesse a cego para não dar o braço a torcer. No fundo, no fun­­do, havia mesmo era uma invejaria geral, misturada com certo ­orgulho-de-povoado, pois as três maravilhas jamais ­foram derrotadas em qualquer campeonato. Era só anunciar a presença das três e as concorrentes já iam saindo de ­fininho, pe­la tangente, rumo à cerca. Quem ousa­ria concorrer com aqueles três ­presentes divinos? Seria até um sa­crilégio.
Por seu lado, o coronel não perdia mis­sa dominical, todo enfatiotado com seu linho, gravata de Paris, lencinho bem en­­gomado, lá ia ele e - é claro! - acompa­nha­do pelas três beldades. Tamanha vai­­da­­de para ir à missa devia ser pecado, co­­­mentavam as comadres de plantão, mas quem iria dizer isso para o coronel? O padre? Nem pensar, pois o coronel era bom de colocar notas sonantes no sa­­quinho do ofertório. Assim, a vaidade ex­­plodia o peito do coronel, vendo o povo in­teiro morrendo de inveja. Soma­va vaidade com soberba, por conta das ­cabras tão maravilhosas.
Acabada a hora da reza, o coronel ia presentear as cabras, na feira, com a melhor das alfaces ou qualquer coisa que as divinas quisessem. Custavam caro, mas valiam a pena! Afinal, pen­sa­va o coronel, se Deus lhe deu essas cabras é porque havia um pacto ­qualquer entre ele e a divindade. Assim, ele bem que tinha algo de di­ferente dos mortais comuns: as cabras que Deus dera a ele e a mais nin­guém.
Na porta da igreja, uma beata escan­ca­rou a boca de poucos dentes e muita ma­lícia, com o dedo apontado para o co­ro­nel:
- Isso tudo é pecado, coronel. No ­fi­nal só tem uma coisa certa: a morte. Quan­do o senhor morrer, quem vai ficar com as cabras?
O coronel nem pestanejou na heresia da santarrona:
- Ora, não tem cabimento deixar com alguém de pouco estofo e então as ca­­bras vão pro céu comigo. Juro que vão mesmo!
Foi um silêncio constrangedor, pois quem disse que havia cabras no céu? Du­­rou um minuto, e depois tudo voltou ao normal, na algaravia da feira dominical.
O assunto ganhou a praça, todo mun­do queria discutir, as cabras deveriam ou não ter um herdeiro? Dia esquentando, as cabras comendo o bem-bom, a discus­são subindo, a cachaça anuviando os juízos e eis que, de repente, o ­coronel ­fi­cou estatelado, com a visão no apocalipse, no além do além, ou mais além. Não se mexia, algo estava errado, todo mundo foi se achegando, beliscando, dando tapinha na cara do coronel, tentan­do despertar o homem, gritando:
- Acorde, coronel! O que está haven­do?
Não teve jeito, quando o boticário che­­gou, o coronel já não tinha mais tremeliques, estava durinho e havia ­mesmo voa­do para os céus com suas juras ­ainda fresquinhas.
Montou-se o velório, em caixão pomposo, digno do coronel. A cidade inteira com­pareceu e lá estavam as três cabras, lus­­tradas, sem entender nada daquela pom­­pa, mas, como sempre, estavam bel­­dades comportadíssimas, como de fa­to eram.
Todo mundo invejava aquelas três viúvas tão lindas. Quem não gostaria de tê-las? Mas o coronel havia jurado que elas iriam para o céu com ele e ­qualquer atrevido que vertesse o olho-gordo para elas estaria amaldiçoado para todo o sem­­pre! Assim, quem pensava em ficar com alguma das cabras, logo pisava no pró­­prio pé esquerdo, esmagando-o com for­ça para espantar tamanha ziguezira da cabeça. Onde já se viu coçar a fúria do outro mundo?
Dia seguinte, hora do enterro, lá es­ta­­vam as três cabras, ao lado da cruz, en­grinaldadas, felizes com a tamanhice das novidades dos últimos dias. Nunca fo­ram tão bem tratadas, com toda sorte de guloseima. Até pratinhos foram colocados com mil comidas diferentes ao re­dor da cova do coronel, para atender as rea­lezas, bem direitinho. Seriam tratadas, dali para diante, ao pé da cova, até quando Deus quisesse levá-las para junto do coronel. A cruz do coronel tinha tan­tas flores quanto as três cruzinhas que fixavam a corda das três cabras en­costadi­nhas do túmulo do bem-amado.
No retorno, a beata deixou escapar ou­tro comentário sutil:
- Só doido ou bêbado poderia ­querer mudar o testamento do falecido. ­Tadinha das cabras!
Ninguém entendeu bem, ou quase nin­­guém. O certo é que, no chegar da noi­­te, apareceu um já-bêbado, rodopiando pela cidade. Todo mundo viu, todo mun­­do observou aquela figura ­malsinada es­corando-se em qualquer lugar, com per­nas trôpegas, mal segurando o próprio pescoço. Ninguém queria nada com ele, pois na certa era novidade das ­ruins num dia já tão triste. De novo, a beata fez um comentário:
- Vixe! Quem gosta de gente assim é cemitério.
O bêbado teve um estre­bucho, como se a frase tivesse chegado à sua orelha al­coolizada. Ergueu o pescoço, aprumou-se como pôde e saiu cambaleando na di­re­ção do cemitério, inspirado por al­gum sopro etílico. Foi um alívio ver aquela figu­ra trôpega misturando-se com a escuridão, na direção da última-morada.
O bêbado chegou ao cemitério, viu as três cabras, foi se achegando, ­sentou no túmulo e puxou prosa com o defunto.
- Uai, seu moço, as cabras são boni­tonas. Desculpe: lindonas! Eu topo ficar com elas, pra desobrigar o amigo no além. E olhe: pago muito bem. Vamos acertar aqui um bom preço, e tal...
Conversa vai, conversa vem, as cabras nem ligando, pois havia comida so­brando nos pratinhos, agora dividida com o penetra que não negava um bom-boca­do. A noite foi aprofundando e quando tu­­do era um silêncio só, conseguiu propor negócio:
- Eu pago mil para cada cabra. Juro que vou tratar muito bem de­las e, ­quando elas morrerem, ju­ro que levo-as pro céu, pra en­con­trar o senhor.
Bateu o sino da meia-noite, na igreja, alvoroçando o bêbado.
- Eita! Olha o sino. É a voz do ­amigo fi­nado, chegando do céu. Quer dizer que o homem-bom concorda com a ­proposta. Pois está bom, vou levar as cabras e dei­xar o pagamento aqui como testemunha do nosso trato.
No dia seguinte, a cova do coronel es­tava como antes, cheia de flores, mas sem as cabras. Sobre o mármore havia um cheque preenchido, no valor de três mil, com rabiscados e assinatura jamais en­tendidos por qualquer pessoa.
Correu a notícia de que alguma alma pe­nada havia levado as cabras pro coronel e deixado um cheque para testemunhar a transação pouco celestial e ­muito esquisita. O certo é que todos ­desejaram boa sorte para as cabras que nunca mais des­filaram no lugarejo.
 
Publicado na Revista O Berro n. 103




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