Todo domingo era especial, com roupa nova, missa logo cedo, feira barulhenta, era mesmo um feriado. Sempre estava lá Jeromo e seu bode Rojão, com coleira nos trinques, brilhosa, desfilando o xampu da véspera.
Neste dia, Jeromo se distraiu e Rojão se enfiou numa lixeira, pouco respeitando seu caríssimo perfume, enfresteando as patas na busca de um bem-bom. Ninguém viu, ninguém provou, mas Rojão virou uma peste depois disso. Voltou pra feira, arrasando tudo. Tinha os olhos esbugalhados, olhando o muito além. Era um zumbi doido solto na quebradeira. Rebentou barraca, taboado, misturou frutas, sujou queijos e quanto mais se mexia, mais se enrascava em cordas, fio, panos, panela. Um alvoroço total.
Começou então a pular sobre alguma coisa invisível, tentando se livrar. Muita gente levou coice, patada, topada, tropelada, pancada, chifrada. O bode, de santo, virou demônio sem mais porquê.
Jeromo foi se chegando, falando o nome, mas o bode rosnou feio e uma marrada certeira enviou o dono pro hospital logo atrás da igreja. As mulheres correram, a criançada gritava, a molecada queria mais farra, os homens se juntaram para dar um fim a tanta encrenca. Tentaram pegar o bode, mas não houve jeito; escorregava, escabritava, retorcia, mordia, ninguém segurava tamanho desafeto.
- Tá com a bubônica, esse filho de satanás - vociferou Neco, do açougue.
- Vai ver é a tal vaca-louca que pegou o bode - apostou Jaime de Nena.
Foi aí que chegou o padre e viu tamanha anarquia. Olhou nos olhos do mufungo e nem pestanejou: abriu o vidrinho de água-benta e jogou no bruto, falando "vate retro" que devia ser algo misterioso para curar a doença.
O bode disparou, babou, relinchou, quase latiu, grunhia, falava várias línguas, jamais vistas na região.
- Isso é o próprio Cão - falou o padre, benzendo-se de cima em baixo, logo acompanhado pela multidão. Quando a feira havia se transformado num monturo, ouviu-se um espocado: o coronel havia disparado sua velha carabina no desafeto que rodopiou no ar e foi se esborrachar lá no meio da carne-de-sol esparramada no chão. Ficou com um sorriso esquisito, babando, olho arregalado; ninguém queria chegar perto.
- É o diabo olhando a gente - sussurrou alguém.
O bode, que era famoso pelo charme, então virou lenda. Ganhou caixão-de-defunto, flores, coroa. Jeromo fez até discurso regado a uma boa cachaça e a criançada acompanhou o enterro ao lado do cemitério. Ali foi construído um túmulo de tijolo, bonito, com pedestal e tudo o mais. A mão-de-fada da cidade fez até uma estátua do bode e colou por cima de tudo. Jamais um bode foi tão cerimoniado.
O padre compareceu, mas rezou de contramão, pois disse que o bode podia ter feito um pacto com o diabo e sua reza só teria serventia se fosse um bode do bem.
Veio a primeira noite, sendo notícia obrigatória que destampou muitas garrafas noite adentro. No dia seguinte, veio a notícia:
- Amarraram o bode. Amarraram o Rojão.
Todos correram para o túmulo e lá estava o motivo da confusão: o túmulo estava acorrentado, com cadeado e tudo o mais. Até a estatueta estava com correntes finas, entrelaçadas, para não deixar escapar a alma do Cão.
- Morto tem que ser assim, com segurança - garantiu o coveiro Firmino do Ó - que jurou ter acorrentado o dito-cujo dentro do caixão, pra maior garantia. Quatro correntes e sete cadeados. Agora, o Cão tá bem preso.
Até hoje todo turista que passa pelo povoado faz questão de ver o túmulo acorrentado que, talvez, guarde o diabo mais bem guardado do mundo.
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