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A cabra arranjada

- 08/08/2008

Era um povoado famoso pelas cabras e que, de repente, havia inventado uma loteria toda especial. No centro da praça foi plantado um gramado que, no dia do sorteio, era riscado em quadra­di­nhos, os quais eram “vendidos” para os apostadores. Soltava-se uma cabra gorda que havia enchido a pança e logo iria deitar bolotinhas no verde.

A população ficava ao redor, torcendo para ver onde a cabra iria soltar as primeiras bolotinhas, sussurrando e dando conselhos pra ver se orientavam o ani­mal para o local preferido. O quadradinho sortudo, ou seja, onde caíssem as primeiras bolotinhas, ficaria com 50% do prê­mio e todos os outros onde caíssem outras bolotinhas dividiriam os restantes 50%. Nunca ninguém havia visto uma lo­teria tão democrática.

Funcionou bem durante várias semanas, todo mundo comprando ora um, ora outro quadradinho. Os mais enrica­dos compravam logo quatro, cinco qua­dra­dinhos.

Um dia, Zé da Silva - nome melhor que esse não há! - advogado de todo mundo que defendia causas na própria feira, regado a cana e esfregaço-de-caju, levantou a questão:

- Tá tudo muito bonito, mas a cabra pode estar viciada. Sugiro que seja um animal sem filiação a nenhum partido. Uma cabra diferente pra cada dia.

A discussão foi grande e o resultado é que o douto iria ceder uma de suas cabras para a loteria tão democrática. Todo mundo não entendeu qual a diferença entre uma cabra e outra e deixou o assunto pra lá.

 

 

 

No dia do sorteio, todo mundo acoto­velado, e a cabra marota, galega, entrou no recinto, franziu as narinas, cheirou aqui e ali, fincou pé num quadradinho, mor­discou a grama e logo despachou as primeiras bolotinhas no verde, sob aplau­so de Zicão de Nega. Era seu primeiro prêmio e ficou rindo feito tonto.

Na semana seguinte, entrou outra cabra do advogado, tartarugada, franziu as narinas, saiu cheirando, fincou pé num quadradinho, abocanhou a grama e despejou bolotinhas premiadas. O vencedor, advinha! - Zicão de Nega! Eita camarada de sorte.

Na outra semana, foi a vez de uma cabra graú­da do advogado, ­em­pa­­vonada, malhada, franziu as narinas, saiu cheirando, até descobrir um quadradinho preferido, mordis­cou a grama e caíram bo­lotinhas no gramado, premiando - oxa! - Zicão de Nega, de novo!

Começou o zum-zum-zum, falação grossa, por baixo do pano, devia haver um arruma­dinho nessa história, pois Deus no céu não iria dar três loterias pra um ho­mem só, se existem tantos necessitados implorando a mesma benquerença! Jura por jura, todo sertanejo jurava igual e não tinha graça Deus premiar só o Zi­cão. Até o padre ficou de orelha em pé, pois em terra muito pobre, Deus não costuma tomar partido.

Mais um final de semana, chegou a cabra Marita do advogado, linda, compri­da, desfilando pomposa, antes de entrar no gramado. Ganhou até aplausos. Quando pisou no gramado, franziu as narinas, começou a cheirar aqui e acolá até chegar ao quadradinho de sua predileção, mordiscou a grama e - ploc-ploc-ploc! - despejou as bolotinhas premiadas. De quem era o quadradinho? Zicão de Nega.

O povo endoidou. Havia maracutaia, na certa!

Acabada a festa, a feira esquentou, a cachaça rolava em meio a tanta fala­ção. A cabra saiu do gramado e ficou perambulando, solta, na praça, pois ninguém botava mão em miúnça alheia. Só que Marita endoidou, passou a morder a calça de Jacó de Biu que estava bêbado e não conseguia se livrar. Todo mundo foi reparando que a Marita achou alguma coisa que lhe interessava no bolso de Jacó, que - por azar! - era empregado de Zé da Silva, o esperto advogado de todo mundo.

Vira e me­xe, tira e retira a cabra, pega-e-desencosta, tapinha e mais tapinha, não tinha jeito, Marita queria mesmo o conteúdo do bolso do bêbado e - como bolso de bêbado não tem dono - Belar­mino enfiou a mão e tirou lá de dentro um vi­drinho, que a cabra passou a lamber, ardorosamente. Tinha cheiro de planta, de erva.

Foi quando todo mundo desconfiou. De olhos arregalados, os curiosos voltaram até o gramado, cheiraram o quadra­dinho premiado. Pois não é que tinha o cheiro do vidrinho?

A maracutaia estava descoberta.

O padre, as beatas, o povoado inteiro, caiu sobre Zé da Silva, o golpista que era bem-amado, advogado gratuito, que achou por bem explicar tudo dentro dos conformes:

- Era tudo um tira-teima, minha gente. O negócio era saber se havia jeito de enganar a loteria. E ficou provado que havia. Bastava acostumar a cabra a um sabor bem-bom e chuviscar no quadra­dinho. O resto ficava por conta do animal.

A gritaria foi imensa e o jeito foi encerrar a conversa:

- O dinheiro de Zicão de Nega está guardado, acumulado pra próxima semana, que vai ser um bruto sorteio. Só que, dessa vez, quem vai emprestar a cabra será o vigário, para evitar qualquer es­trupício. E tenho dito!

Foi um aplauso geral, jamais visto no sertão.

 






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