Era um povoado famoso pelas cabras e que, de repente, havia inventado uma loteria toda especial. No centro da praça foi plantado um gramado que, no dia do sorteio, era riscado em quadradinhos, os quais eram “vendidos” para os apostadores. Soltava-se uma cabra gorda que havia enchido a pança e logo iria deitar bolotinhas no verde.
A população ficava ao redor, torcendo para ver onde a cabra iria soltar as primeiras bolotinhas, sussurrando e dando conselhos pra ver se orientavam o animal para o local preferido. O quadradinho sortudo, ou seja, onde caíssem as primeiras bolotinhas, ficaria com 50% do prêmio e todos os outros onde caíssem outras bolotinhas dividiriam os restantes 50%. Nunca ninguém havia visto uma loteria tão democrática.
Funcionou bem durante várias semanas, todo mundo comprando ora um, ora outro quadradinho. Os mais enricados compravam logo quatro, cinco quadradinhos.
Um dia, Zé da Silva - nome melhor que esse não há! - advogado de todo mundo que defendia causas na própria feira, regado a cana e esfregaço-de-caju, levantou a questão:
- Tá tudo muito bonito, mas a cabra pode estar viciada. Sugiro que seja um animal sem filiação a nenhum partido. Uma cabra diferente pra cada dia.
A discussão foi grande e o resultado é que o douto iria ceder uma de suas cabras para a loteria tão democrática. Todo mundo não entendeu qual a diferença entre uma cabra e outra e deixou o assunto pra lá.
No dia do sorteio, todo mundo acotovelado, e a cabra marota, galega, entrou no recinto, franziu as narinas, cheirou aqui e ali, fincou pé num quadradinho, mordiscou a grama e logo despachou as primeiras bolotinhas no verde, sob aplauso de Zicão de Nega. Era seu primeiro prêmio e ficou rindo feito tonto.
Na semana seguinte, entrou outra cabra do advogado, tartarugada, franziu as narinas, saiu cheirando, fincou pé num quadradinho, abocanhou a grama e despejou bolotinhas premiadas. O vencedor, advinha! - Zicão de Nega! Eita camarada de sorte.
Na outra semana, foi a vez de uma cabra graúda do advogado, empavonada, malhada, franziu as narinas, saiu cheirando, até descobrir um quadradinho preferido, mordiscou a grama e caíram bolotinhas no gramado, premiando - oxa! - Zicão de Nega, de novo!
Começou o zum-zum-zum, falação grossa, por baixo do pano, devia haver um arrumadinho nessa história, pois Deus no céu não iria dar três loterias pra um homem só, se existem tantos necessitados implorando a mesma benquerença! Jura por jura, todo sertanejo jurava igual e não tinha graça Deus premiar só o Zicão. Até o padre ficou de orelha em pé, pois em terra muito pobre, Deus não costuma tomar partido.
Mais um final de semana, chegou a cabra Marita do advogado, linda, comprida, desfilando pomposa, antes de entrar no gramado. Ganhou até aplausos. Quando pisou no gramado, franziu as narinas, começou a cheirar aqui e acolá até chegar ao quadradinho de sua predileção, mordiscou a grama e - ploc-ploc-ploc! - despejou as bolotinhas premiadas. De quem era o quadradinho? Zicão de Nega.
O povo endoidou. Havia maracutaia, na certa!
Acabada a festa, a feira esquentou, a cachaça rolava em meio a tanta falação. A cabra saiu do gramado e ficou perambulando, solta, na praça, pois ninguém botava mão em miúnça alheia. Só que Marita endoidou, passou a morder a calça de Jacó de Biu que estava bêbado e não conseguia se livrar. Todo mundo foi reparando que a Marita achou alguma coisa que lhe interessava no bolso de Jacó, que - por azar! - era empregado de Zé da Silva, o esperto advogado de todo mundo.
Vira e mexe, tira e retira a cabra, pega-e-desencosta, tapinha e mais tapinha, não tinha jeito, Marita queria mesmo o conteúdo do bolso do bêbado e - como bolso de bêbado não tem dono - Belarmino enfiou a mão e tirou lá de dentro um vidrinho, que a cabra passou a lamber, ardorosamente. Tinha cheiro de planta, de erva.
Foi quando todo mundo desconfiou. De olhos arregalados, os curiosos voltaram até o gramado, cheiraram o quadradinho premiado. Pois não é que tinha o cheiro do vidrinho?
A maracutaia estava descoberta.
O padre, as beatas, o povoado inteiro, caiu sobre Zé da Silva, o golpista que era bem-amado, advogado gratuito, que achou por bem explicar tudo dentro dos conformes:
- Era tudo um tira-teima, minha gente. O negócio era saber se havia jeito de enganar a loteria. E ficou provado que havia. Bastava acostumar a cabra a um sabor bem-bom e chuviscar no quadradinho. O resto ficava por conta do animal.
A gritaria foi imensa e o jeito foi encerrar a conversa:
- O dinheiro de Zicão de Nega está guardado, acumulado pra próxima semana, que vai ser um bruto sorteio. Só que, dessa vez, quem vai emprestar a cabra será o vigário, para evitar qualquer estrupício. E tenho dito!
Foi um aplauso geral, jamais visto no sertão.
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