Abelardo era o conhecedor dos males de qualquer tipo de animal. Se algum tossia, Abelardo logo receitava: “é mal da venta quente”. Se o animal se contorcia sem parar, logo dava a receita: “é esquiquiança chegando”. Se não era calor e a cabrita abortava, logo dizia: “é bucho sujo”.
Não havia doutor que emparelhasse com Abelardo para não tirar o boné e confessar:
- Seu Abelardo, o senhor não tem diploma, mas é cheio de sabença.
Para cada um que visitava o doutor diplomado, havia cem que visitavam o Abelardo, saindo sempre com um sorrisão na boca, pois ele não cobrava e ainda acertava no veredicto. No seco e no molhado, ou seja, de cara sã ou cara-cheia de cana, Abelardo acertava todas.
Certa feita, o coronel Sinfrônio, sempre com aquele ar de metido-a-besta, dono-do-mundo, comprou um carneirão, um super, um máximo. Ai de quem pensasse mal do carneiraço do coronel! Nem bem comprou e já colocou no juizado da feira, onde todo mundo podia apostar no animal preferido. Muitos apostavam só para perder e, ao mesmo tempo, ganhar o direito a uma cobertura do super-super.
- O indivíduo perde com honra, pois tem o direito de melhorar sua carneirama, com uma cobertura do bem-bom.
O carneiro, satisfeitíssimo, cumpria com perfeição seu trabalho, ali mesmo no terreiro da feira. O certo é que o carneiraço do coronel ganhava todos os páreos, de todos os sábados, logo depois da missa e cobria bem uma dezena de dondocas, sempre querendo mais. Esse arranjado fazia bem para todo mundo e ninguém pensaria em mexer neste jogo de vencedores.
Tudo correu muito bem até o dia em que a ovelhama e e marranzada da região começou a parir a filharada do super-super. A notícia correu e logo o veterinário plantonista pediu água, pois não atinava com o mal que estava ali sendo parido, um atrás do outro. Chamou os colegas de branco e cada um dava uma receita diferente para tamanha estranheza.
As ovelhas pariam normalmente, sem dores, contrariando a Bíblia que dizia que deviam sofrer, mas as crias eram mesmo muito esquisitas, parecendo de outro planeta. Umas tinham cinco patas; outras não tinham pescoço; outras tinham um traseirão e nada de frente; outras tinham um cabeção e nada de patas; outras tinham uma orelha enorme e outra anã; uma tinha dente, mas não tinha lábios; um machinho tinha tudo no lugar, menos a verga; outro tinha cara de cachorro; outros pareciam uma mistura de ovelha com macaco.
Tamanho desacerto nas coisas da Natureza só podia ser obra do Cão, o Todo Malvado, que teria amarrado o super-super em suas maledicências. O padre ficou horrorizado, mas negou-se a jogar água-benta no super-super; caridade que foi feita por uma beata do segundo degrau do altar. Estranhamente, o super-super não pegou fogo, nem aconteceu o estalo, que acompanham as traquinadas do Cão em suas andanças pela Terra. O problema era daqui mesmo, sujeito à explicação dos homens.
O coronel mandou buscar doutor veterinário em várias cidades, para fazer uma sessão na praça, e logo havia uma porção de jalecos brancos analisando as crias que nasciam e morriam, ou já cresciam aleijadinhas de fazer dó. Analisavam cada cria e, depois, vasculhavam o super-super: garganta, quentura, pêlo do sovaco; dobradura da cauda; unhas; mal-de-verga torta; e mil outras coisas. O carneiraço nem se ligava, pois só esperava a outra safra de dondocas.
Quando o veredicto não saía, alguém se lembrou: “Vamos buscar o Abelardo”.
Dito e feito, foram acordar o curandeiro que estava num porre homérico, há dias, curtindo a última chifrada de uma longa sequência que era por todos festejada e comentada. Era um doutor bom de veredicto, mas ruim de mulherio. Por sorte ele mergulhava a amargura na garrafada e logo estava pronto para outras, para gáudio da cidade.
Meio acordado, tremulando nas pernas, mais carregado que andado, foi se chegando o Abelardo, ouvindo o zum-zum do povaréu e a gritaria do coronel:
- Olha aí, seu Abelardo, um super-super carneiraço, mais festejado que o César das antigas Romas, cruzou as melhores ovelhas e veja só a porcariada que está nascendo. A que diacho se deve tamanha desgostura?
Abelardo olhou um monstrengo, dois monstrengos, vinte monstrengos, tropeçando aqui e ali; apalpou um; enfiou o pé em outro; enfiou o dedo na nuca dum pixote; puxou as patas dum aleijão; aprumou-se; pediu o copo que o ajudante carregava; bebeu lentamente com os olhos voltados para o céu como se estivesse pedindo ordem para Deus; empertigou-se como juiz pomposo, deixando claro que podia dar o veredicto.
A multidão inteira se calou, pois ia falar o grão-mestre de todas as redondezas. E ele, erguendo o copo, foi categórico:
- É questão de junta!
Foi um bafafá, um lufa-lufa. Os veterinários queriam saber se havia excesso de selênio, ou falta de magnésio no sêmen do carneiro; ou cloreto de qualquer coisa. Enfim, algum nome esquisito para explicar o mal das juntas que o doutor-sertanejo havia veredictado. Ganhando coragem diante da sumidade, tentaram uma explicação:
- Questão de junta como? O quê? Todos os bichos comeram muito bem e, então, não podia haver mal de junta. Os exames mostram que esta epidemia não tem nada com artrite.
Abelardo balançou-se nas pernas, deu um sorriso maroto pro coronel, depois pra todo mundo e ditou sua sentença que deveria, como todas as que dissera até essa data, ser seguida com rigor:
- Eu disse junta, sim. Aqui é uma questão de junta. Junta tudo e joga fora. Junta o carneirão também e joga fora. Esse é o único remédio: junta tudo e joga fora.
O populacho aprovou e a feira ganhou motivo para esquentar a festa e as goelas por muito tempo.
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