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As cabras do Coronel

- 01/11/2006

 

O Coronel Jacó era defensor das cabras vistosas, mas Da. Lilá as odiava, pois comiam as flores do jardim, tão cuidadosamente zelado. Quando fazia as queixas, o Coronel balançava a cadeira e sorria, com aquele sorriso maroto, mas de aprovação para as cabras do que aceitação das lamúrias da esposa.
Percebendo que iria gastar o resto da sua vida sem ser ouvida, Da. Lilá esperou chegar uma data de viagem importante do Coronel e contratou um magarefe para, naquela sexta-feira, acabar com as cabras do Coronel, de uma vez. As cabras não viveriam uma hora sequer depois que o Coronel tivesse ido embora. O magarefe encheu a boca de sorrisos, pois o preço combinado era negócio de pai para filho e teria muita carne para vender na feira do sábado.
Mas o destino era outro. Naquela sexta-feira, cedinho, o Coronel estava afobado, bufando, saiu para tomar um ar fresco na vereda até o açude e, quando voltava, ofegando, já pertinho de casa, teve um peripaco, fraquejou das pernas e estrebuchou no chão. Correu todo mundo; o homem tremia; carregaram para dentro enquanto outro disparava atrás do médico do povoado. Quando o doutor chegou, só teve que dizer a notícia fúnebre: "Cheguei tarde; o Coronel se foi".
Foi um alvoroço geral na casa-grande, um corre-corre nunca visto, colhendo flores, acendendo velas, tapando santos, cortando a alegria de todo mundo. O dia inteiro chegava gente para ver o sorridente Coronel, no caixão.
Da. Lilá, vestida de negro, cheia de lágrimas, não escondia a tristeza e remoía os pensamentos, tentando explicar a tragédia: aquilo só podia ter acontecido porque ela havia decidido liquidar as cabras. Com certeza, a sorte havia se invertido no outro mundo e quem morreu foi o Coronel. Isso quer dizer que as cabras eram filhas do azar. Então o certo seria enviar as cabras para o além, junto com o Coronel.
No finalzinho do dia, de sol fraco, o povo inteiro acompanhou a procissão-de-enterro e muita gente quis falar: o prefeito, o delegado, o juiz, o deputado, o padre, todos enaltecendo a figura do póstumo que jamais fizera um malzinho contra alguém. Tinha sido um Coronel do bem e, como tal, só merecia as orações. Foi aí que aconteceu o milagre.
Ninguém sabe explicar, mas eis que vão chegando três cabras bonitas, velhas conhecidas de Da. Lilá. Eram as três mais arteiras, atrevidas, descaradas, desenxabidas que enfrentavam, com o olhar, a matrona no jardim. Cada uma trazia, na boca, alguns raminhos com flores - claro! - do jardim de Da. Lilá. Eram flores vermelhas, amarelas, laranja, brancas, um arco-íris, como sempre gostava o Coronel.
- "Flores têm que ser de todas as cores", dizia ele, na hora que Da. Lilá sempre estava preparando o vaso da sala.
As cabras pareciam conhecer a preferência do Coronel e vieram trazer as flores para o último vaso. Ousadamente, as três foram abrindo caminho na multidão, desfilando majestosamente. Quem iria impedir uma cena dessas? E foram passando, chegando até pertinho do caixão.
Muitos cochichavam que aquilo era um milagre! Outros diziam que era uma mensagem do divino. A viúva, porém, achou que aquele era o último descaramento das cabras destruidoras, um deboche e já via as carcaças penduradas no jirau da feira. Franziu a sobrancelha, em sua sanha matadora, escondeu uma lágrima verdadeira, quando ouviu:
- Olha, Da. Lilá, as cabras estão tristes pelo Coronel. A senhora perdeu o marido, mas ganhou umas cabras tão carinhosas, que já estão com saudades do grande homem que ele foi.
O mundo desabou para Da. Lilá. Perdeu o marido e ali estavam três cabras graúdas, mascando o cabo das flores, sem nunca chegar nunca às pétalas reservadas para o Coronel.
- É a voz do Coronel. É uma mensagem do além - repetia alguém.
E foi assim que Da. Lilá mandou alguém avisar ao magarefe que o negócio estava desfeito, pois até o Coronel havia conversado com ela, por meio das cabras.
Quem iria mexer com a integridade de animais que têm ligação com o além? O certo é que todo mundo voltou para casa, na garoa mansa que mal nenhum fazia, só ficando as três cabras perto do túmulo, até o anoitecer. Dona Lilá foi a última a ir embora e, olhando as cabras que ficavam, pensou que havia agido corretamente, como queria o Coronel. Daí para frente, nunca mais praquejou quando as cabras e cabritas saltavam a cerca e entravam no jardim. Pelo contrário, até sorria, pois era o Coronel dizendo que estava feliz no além...
 
Publicado na Revista O Berro n. 96





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