O desfile ia começar, todos os tratadores estavam chegando com os animais bem escovados, tinindo na luz do dia, augurando que sairiam dali com a roseta de campeão. Juntou gente no meio da pista quando, de repente, começou uma grossa confusão num lado da pista. Logo a confusão virou duas, indo um bandinho pro outro lado, de onde passou a insultar, com palavrões de bom calibre, o time que restou na banda de cá. O pessoal no centro parou para assistir tamanha quermesse em pleno dia de exposição. O bando de cá, no tom do de acolá, não arredava pé e devolvia a algaravia no bom estilo do sertão esturricado, lambuzando a honra da mãe, da esposa, das filhas, e todas as ascendentes lembráveis. A confusão ganhou corpo e um mequetrefe, bem engomado como a tiazinha mandou, chegou de mansinho e escorreu um revólver por baixo dos panos. E, então, tudo ficou sem jeito, ia sair tiro, mesmo.
A turma do outro lado correu, abriu e fechou baús, vasculhou as redes e voltou com a fazedeira-de-defunto na mão. E começou o tiroteio, com bala cortando o ar, atravessando a pista de julgamento. Os tratadores fizeram o que bem sabiam fazer: azularam para a cerca, arrastando cabritos, bitos e bodes, na marra.
A saraivada de tiros continuou, com os desafetos soltando chumbo grosso, enquanto chegavam mais armas ninguém sabe donde. Foi aí que todo mundo descobriu o ó:
- Eita! O Gerson tá lá na pista.
Era verdade, o coitado do Gerson era todo sorridente, nunca falava com ninguém, mas tinha um sorrisão de fazer gosto e não havia quem não gostasse de alguém tão calado. O certo é que o bode Nubiano, prá lá de cem quilos, fungava, resfolegava, fincava os pés, pulava, cabriolava, virava os olhos, avermelhava, e nada! - o Gerson era bom de pulso, mantendo o bicho ali, firme como uma batata de umbuzeiro na ventania.
E todo mundo via o tal Gerson, o novato, metendo bronca no bode desavergonhado. Era um sermão danado. As balas voavam, Gerson não olhava, nem queria olhar, pois seu negócio era mostrar sabença no trato com as miúnças e, agora, esse bode da bubônica queria botar banca de valente pra cima dele. Nem podia! Gerson era forte como baobá.
- Que homem valente! - balbuciou o velhinho, antigo fazendeiro, que ia chegando para assistir a grande festa.
- Gente assim é que faz o Brasil crescer; merece parabéns. Vou lá ajudar a segurar aquela fera.
Nem bem falou, já cruzou o portão e foi entrando na pista, com os olhos fincados na balbúrdia do Gerson com o bodão. Era um show: o bodaço saltava, estirava, atropelava, cabeceava, mas nada! - Gerson era homem de pulso duro, embora ninguém nunca tenha ouvido sua voz.
Do lado de fora, um magote de gente gritava, gritava, gritava, mas o velhinho completou o percurso, sem nem se importar.
O velhote foi se aproximando, aguentando as pernas como podia e foi logo adiantando prosa:
- Eita, homem bom de serviço. Vim aqui dar uma mãozinha pra quebrar a desaforança desse peludo mal-intencionado.
Gerson viu a figura rocambólica, olhou o bode brigão, e não entendeu qual dos dois era pior naquela situação.
Os homens, lá fora, escondendo-se dos tiros que cortavam os ares, tremendo de medo das famosas balas-perdidas, tentavam gritar alguma coisa, mas o que se ouvia era:
- Esse velho é surdo. Alguém tem que avisar que tem bala voando pra todo lado. Vai morrer no meio da pista.
Deus, lá no céu, no entanto, estava apreciando o bom combate: duas turmas nas laterais lascando chumbo uns nos outros, com bala trançando em vôo rasante pela direita e esquerda de Gerson. O bode, como todo bom bode, estava só esperando uma chance para aprontar uma prezepada, e já seguia mostrando que havia entrado em pânico total no meio da zoeira e das balas. Só quem sabe o que é um bode em pânico, pode imaginar a cena dantesca. Gerson era o Sansão, o Hércules, o Ajax, o segurador da besta fera que tripudiava a boa imagem que deveria desfilar ali no recinto.
O velhote gritava; não funcionava. Aumentou a voz; não funcionou. Estridulou; nada resultou; nem o bode e nem o Gerson sequer olhava a bizarra figura descabelada.
E eis que o coronel Dandino, patrão do Gerson, acabara de chegar ao parque, encostando no povaréu acovardado, na beira da pista. Estava de olho arregalado, segurando o chapéu, alvoroçado pelas balas que voavam.
- Que se passa?
- É aquele velhote lá no meio, ele é surdo, não está ouvindo os tiros e foi lá cumprimentar o Gerson que está aguentando o bode sacana, sem ter trégua.
- O velhote é surdo?
- Isso mesmo, igual a uma porteira velha. Não ouve nadinha.
- Vixe! - arrematou o coronel - então a encrenca está completada, porque o Gerson não vai entender nada.
E todos arregalaram os olhos, concordando, embora nunca tinham ouvido a voz do Gerson. O capitão finalizou, esclarecendo a estranha situação:
- O Gerson também é surdo, mouco de fazer dó. De ouvido bom, ali, só tem mesmo a besta fera. Eita encrenca lascada!
E essa foi a história que ficou: só o bodaço de cem quilos ouvia os tiros e estava doido para escapar, nem que tivesse que rebentar a corda no tranco.
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