Belarmino era um cabra macho. Dizia que esteve no bando de Zé Rufino, um cangaceiro que fez fama na década de 30. Por isso, gostava de andar vestido como Lampião e, nesses dias, ficava arrogante, chato, dando bronca na sombra. No sábado, finalzinho de feira, sentou-se no tamborete do Bar do Quincão e perguntou:
- Tem leite de cabra?
- Tem, assim como Deus está no Céu.
- Tem cana da Pitu?
- Tem, assim como Deus está no Céu.
O velho cangaceiro amontou-se pra curtir a última cana do dia. Era uma lapada de cana seguida de uma de leite de cabra. Rascunhou uma conversa, olhou a platéia e chamou Quincão.
- Quer dizer que Deus está no Céu?
- É claro, seu Belarmino.
O cangaceiro pegou Quincão pelo cangote, levou até a soleira e sarrafeou:
- Ô homem, tu tá vendo a nuvem no céu?
- Tô.
- Tu tá vendo aquele urubu voando acolá?
- Tô.
- Tu tá vendo Deus lá no céu?
- Bom, não...
- Pois deixe de ser burro, homem. Tu não tá vendo porque Ele não tá lá.
Vitorioso, o coronel tomou uma solene lapada de cana, seguida pelo leite. Levantou os olhos, enrugou a testa e perguntou pras pessoas assustadas:
- Alguém vai falar alguma coisa contra?
Todo mundo afinou. Todo mundo, vírgula, pois Nequinha cantador, mais pra lá do que pra cá, equilibrando o copo de cana numa mão e o de cana na outra, foi se encostando:
- Meu coronel, não é mangação, mas tem um engasgo nessa história. Quem mexe em vespeiro sabe que pode vir ferroada.
O coronel arretou-se: "Tá certo, homem, pois desembuche, então!"
- Meu coronel, o senhor tá vendo o sapato do Quincão?
- Tô.
- O senhor tá vendo a orelha do Quincão?
- Tô.
- O senhor tá vendo o cérebro do Quincão?
- Bom, não...
- Pois é isso aí, coronel, não tá vendo porque o Quincão não tem cérebro!
Foi aquela risadaria sem fim. Gente bateu pé. Gente assoviou. Um algaraviado geral.
O coronel, já meio de porre, virou o copo e fincou pé:
- Tá vendo, Quincão: tu, além de cego, também não tem miolo. Vai ver por isso é que tu não enxerga Deus lá nas nuvens.
Mais risada, uma zoada ribombante no final da pracinha, chamando mais gente para assuntar o acontecido. Foi aí que Quincão resolveu dar o troco:
- Coronel, com todo respeito ao senhor, posso ter o direito de ferroar o Nequinha cantador?
- Ora, pois! Se adiante, homem, que o vergalho agora é seu.
E Quincão se aprumou igual a um peru e perguntou:
- Seu Nequinha, tá vendo o copo de leite na mão do coronel?
- Tô.
- Tá vendo o leite de cabra dentro?
- Tô.
- E tu tá vendo a cabra-de-leite amarrada ali no poste da rua?
- Ôxa, é claro que não!
- Pois nem podia ver mesmo, pois isso só é leite de verdade pra quem consegue enxergar a cabra na terra e Deus lá no céu.
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