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A maldição do bode

- 01/06/2007

Era um bode danado, desde novinho, o tal de Falengo. Todo mundo conta­va alguma presepada desse bode, ­desde quando era bodete, bodeco, e bode ­velho. Tinha fama de coisa-ruim, tinha parte com o Cão, era mal-falado, ­mal-cuspido, mal-escarrado, nem perto chegava da por­­ta de uma igreja, nunca acompanhou ve­lório, só gostava de ambiente ruim e que­jandos. Tinha vários poréns e um de­les era ser muito grande e ­sem-vergonha, não dando confiança pra ninguém. Foi ­assim que os dias se passaram e, com eles, os anos, o bode que foi ficando erado, cheio de tretas e trelas para desafiar o desatinado juízo da população local.
Num dia de feira, depois da arruaça rotineira, do ranca-rabo matinal, uma garrafa de cana ficou à deriva na sarjeta, meio quebrada, vazando a boa e rica manguaça no chão empoeirado. Foi ali que Falengo, o bode velho, resolveu ma­tar a sede e, logo, estava pra lá de Cajara­na, doido de fazer gosto, com os olhos ru­biados, como assombração em lua cheia.
Como salvador da danação surgiu o Felis­berto,­ novato no território, e viu aquela quezumba toda, com bode arremetendo sabença e raivosia contra quem quer que fosse corajoso de chegar perto. Nun­ca o bode tão salafrário esteve tão desatinado, com o juízo pendurado nu­ma pontinha de razão.
- Alguém tem que dar um jeito nesse bode da bubônica - exclamavam as vozes em coro, sabedoras dos desva­rios dessa animalha poderosa.
- Não tem dono? - perguntou de man­sinho Felisberto.
- Tem, não, senhor - respondeu o ga­roto, de pronto, já vislumbrando um final feliz pro quereló.
- Pois tá feito, estou mesmo precisando de botina nova.
Armou-se de coragem, pegou a peixeira bem agumada, investiu pra cima do desvairado que estava mais pra lá do que pra cá, e logo o sangue jorrou na cal­çada, em meio a cabeçadas ensande­cidas, patadas raivosas e mordidas ao léu.
Nem o Cão segurava o bode ­famoso que deu um salto, livrou-se do aperto de Felisberto e saiu em desabalada ­correria pela praça, sumindo no meio do casario atrás da igreja.
Bem mais tarde, correu a notícia que Falengo, o terrível, tinha partido desta pra melhor. Para honrar o cavaleiro ma­tador de monstros, foi-lhe permitido fazer uma botina com o couro, troféu mi­le­nar que seria inaugurado com pompa du­rante a missa do próximo domingo, depois de o couro ficar estendido por três dias e três noites, para espantar assombração.
Dito e feito, lá foi Felisberto à ­missa dominical, única da semana, em que o po­varéu todo está presente, pois logo em seguida vem a maior feira das redon­dezas. Estreava a conquistada, botina nova, brilhante, feita do couro do desatinado que tinha parte com o Cão. Estava apertada, apertadíssima, mas isso era tra­dição entre os machos: amaciar botina de couro-cru no próprio pé. E ela ia aper­tando, apertando, apertando, até che­gar ao ponto certo; depois amolecia, amole­cia, e iria finalmente ceder aos ­encantos do herói que poderia sapatear no salão por uma vida inteira. Essa era a crença, mas a realidade doía, e muito, nos pés inchados.
Felisberto aguentou a rezaria, a mis­sa inteira, depois a anunciação da quermesse noturna, depois bebericou umas e outras na feira e, às onze, estava no co­mício, já de cara afogueada, mal se contendo naquelas botinas endiabradas. Por muitas vezes, chegou a se abaixar para arrancar o martírio dos pés, mas se continha para não passar vergonha e le­var pecha de homem fracote. De repen­te, percebeu que não mais poderia tirar as botinas, pois os pés pareciam melancia de tão inchados.
Perto do meio-dia começou a ter visões: enxergava a alma do bode fazendo caretas; via o bode satânico com um martelo batendo em seu pé provocando dores incríveis; via o diabo em pessoa abraçado ao bode gargalhando a mais não ­poder. Ele, o herói, havia se transformado em motivo de chacota pelos demônios do além, pois tinha nos pés, bem calçada, a botina que era o motivo da en­crenca.
Nesse momento um bando alvoroça­do foi se aproximando para contemplar o troféu tão duramente conquistado: a botina do bode Falengo. Carregaram Fe­lisberto nas costas e o aprumaram no pa­­rapeito da mureta da praça, entortando tudo: botina, pé, artelhos, calcanhares. Para piorar, um bêbado deu-lhe um tabefe no pé, pedindo com insolência:
- Conte pra nós como venceu o diabo do bode, e conquistou essa bela boti­na.
Felisberto rangeu os dentes, ­estava uma fera, possesso, puxou o canivete que mais parecia uma grande peixeira, sentou-se na pedra e - tchum! - cortou o couro na ponta do dedão.
- Oh! - gritou a multidão.
- Felisberto suspirou de alívio, ­vendo o dedão vermelho, inchado, lascado, sair pela abertura e ganhar a luz do dia. Esta­va livre de mais uma maldição, havia vencido o bode mais uma vez.
Todos queriam entender tão estranha atitude, enquanto ele libertava o outro dedão, e explicava para si ­mesmo:
- Era mesmo um bode maldito, tinha parte com o Cão. A alma dele ­estava presa no meu dedão, como se fosse mal­dição. O próprio diabo me explicou. Agora ficou tudo bem, a alma voou, foi embo­ra. Nunca mais quero botina de bode que não conheci.
Publicado na Revista O Berro n. 102





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