Um dia, um desses milionários que viajam pelo mundo, procurando oportunidades para investir e multiplicar o rico dinheirinho, ouviu um estouro: havia furado o pneu do carrão, perto de uma casa de beira-de-estrada, que mais parecia uma vendinha de sertão. Entrou. O ambiente era limpo, organizado, algumas mesinhas com toalha, negócio muito higiênico para estar enfiado naquele meio-de-mundo onde só havia pedras, mandacarus e capins baixos.
Havia diversos tipos de queijo, ele experimentou, gostou. Experimentou outro: gostou mais ainda. Experimentou um último: era melhor que todos. Eram queijos de cabra. Finíssimos de sabor. E arriscou a pergunta:
- De onde vem esse queijo?
- Vem de minha cabra, sô! É a mulher e os meninos que fazem.
O milionário logo raciocinou: “Esse matuto está com o ouro na mão e não está sabendo. Esses queijos, com “Selo” de raridade, valeriam uma fortuna, na capital.”
Pagou a conta, e continuou a viagem até a próxima cidadezinha. Entrou num hotel, telefonou para uns amigos que chegaram no dia seguinte. Contou sobre os queijos, organizaram a conversa e foram até a vendinha da beira-da-estrada.
O proprietário ficou meio assustado: chegaram dois carrões, gente granfina, metida em terno e gravata, naquele calorão! Só podia ser coisa boa demais, ou ruim demais! Os homens entraram, sentaram, experimentaram refrigerante de caju (da casa), saborearam todos os queijos, puxaram conversa e descobriram que o homem, chamado Quinca, tinha um rebanho de 250 cabras leiteiras, das boas.
- Pois é, seu Quinca, nós gostamos muito de seu queijo, e queríamos fazer uma proposta para o senhor.
O caprichoso produtor de leite-de-cabra olhou com olhos de quem não acredita em milagre fácil. Os outros continuaram:
- A gente resolveu que um homem igual ao senhor precisa de uma oportunidade na vida. Por isso nós propomos gastar muito dinheiro, vamos aumentar as instalações das cabras, comprar mais terra, melhorar essa venda, abrir uma filial na capital, um armazém no porto. Vamos exportar seu queijo para os Estados Unidos. Seu rebanho vai passar de 250 para 1.000 cabras leiteiras, com ordenha mecânica e alto controle genético. O senhor vai ser o produtor mais importante do mundo. Que tal?
O dono ouviu, ouviu, ouviu aquele palavreado e já tinha a resposta na ponta da língua, desde que vira tanto terno e gravata entrando com passo firme na venda.
- Não!
- Não? Mas como? O senhor não quer crescer? Não tem filhos para criar? Não quer diplomar os filhos? Não quer uma vida melhor?
O homem não gostou do interrogatório e retornou:
- Não!
O matraqueiro, porém, era esperto e percebeu que era preciso demonstrar um pouco de humildade, para dobrar o velho.
- Pois, seu Quinca, diga então, por que não, pois só queremos o bem de sua família.
- Olha! estou muito bem com essa mixaria toda. Meus filhos já estão estudando, minha mulher dá aulas na escola logo ali, nossa casa é muito boa, temos até umas economias no banco. Para que mais?
- Uai, seu Quinca, é para ficar rico. Que mal há em ficar rico?
O velho nem pestanejou:
- Pois já sou tão rico! Meu queijo é conhecido, não sobra na prateleira. É um segredo do meu bisavô, que passou pro meu avô, depois pro meu pai, e agora está comigo, enquanto a meninada estuda. Depois vai pra eles.
- Mas, seu Quinca, hoje existem técnicas modernas, maravilhosas. O senhor pode produzir dez vezes mais.
- Eu sei, mas não dá para esquecer como o queijo nasceu. Se esquecer, acabou tudo. Para não esquecer, é preciso não ter trabalho exagerado. Por isso o rebanho é só de 250 cabras, das boas. Tratar de 250 é uma coisa, tratar de 500 ou de 1.000 é conversa pra quem não quer nada!
- A gente coloca técnicos, pessoal especializado...
O velho ficou brabo:
- É minha cabra, sô. As coisas não são assim. Tem que conhecer o nome de cada uma, as manhas, o bom-humor, conhecer o berro, conhecer cada cria, conhecer até a alma. Se não conhecer, não tem leite especial, e, sem leite, não tem queijo dos bons.
- Mas hoje muita gente tem estudo...
- As cabras não querem saber de diplomas. Elas reconhecem o amigo de longe. Cabra é gente fina! Se não for amigo das cabras, não tem queijo. Precisa mais que dinheiro para conseguir um bom queijo. Afinal, vocês sabem o que é a “alma” do queijo?
Os homens empalideceram dentro do nó da gravata.
- Pois é, mas vocês sabem que o violino tem “alma”, que é a garantia do som de qualidade. O violino vale pela “alma” que tem. O queijo também. E, para sentir a alma, não pode haver muitas cabras, pois todas têm que ter espírito igual. Se uma desafinar, o leite do dia vai pro brejo e, com ele, vai o queijo.
- Seu Quinca, pense bem! Essa é a chance de sua vida...
- A chance existe no trabalho duro de minha família há mais de um século. Sempre tivemos as mesmas cabras, de mãe para filha, para neta e bisneta. A família apurou o leite, o coalho, o queijo, o segredo, para chegar ao queijo que vocês tanto gostaram. Se aumentar o rebanho, se sofisticar as instalações, vai ter muitos empregados que só pensam no salário, tudo vai mudar e a “alma” do queijo vai embora. Quem vai pagar pela “alma”, depois?
- Mas, seu Quinca...
- Não! Ninguém pode comprar a “alma” de um queijo como o nosso. Já dizia o meu pai... copiando o meu avô.
- Vai ser um dinheirão na sua vida, seu Quincas...
- Minha vida é minha cabra, sô!
E Quinca ergueu a cabeça, empinou o nariz, estufou o peito, e foi cuidar do trabalho tão honroso que a vida havia lhe dado, como presente do céu.
Publicado no Be 87
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