Podia a caatinga estar rachando, em seca brabérrima, com gota d´água só na imaginação, mas uma coisa todo mundo sabia que era certa: o bode Chamadô não falhava. Também no inverno, açude sangrando, jurema no verdor, o bode Chamadô não falhava. Para ele não tinha tempo bom ou ruim, horário de verão, festejos, trovoadas, ou qualquer outra invencionice - ele não falhava. Dava cinco horas da tarde e Chamadô estava entrando lá pelo fundo do arraial.
Naquele encalorado novembro, o bando cangaceiro de Zé Rufino invadiu o arraial e exigiu uma mesa grande na praça, cheia de comida para seus homens que estavam enjoados de comer calangos no mato! Na hora do bem-bom, vai passando o bode majestoso, exatamente quando o cangaceiro pergunta para o padre assustado que havia sido chamado para abençoar a comilança:
- Ô vigário, que horas são?
- Ôxa, agora é bem cinco horas, com certeza.
- Eita! Certeza? Como? Meus homens não encontraram um relógio para roubar!
- É porque o arraial não precisa de relógio, pois tem aquele bode ali, o Chamadô.
O cangaceiro achou aquilo uma gozação e abriu o berreiro.
- E eu tenho cara de trouxa, tenho? O bode é relógio, por acaso? Está mangando de mim?
- Não, seu Rufino, o nome dele é Chamadô, porque ele passa na hora de chamar as pessoas para a reza do fim-do-dia. É pontual como Deus quis, sempre às cinco horas.
O cangaceiro lambeu os beiços, tirando a gordura da costeleta e retrucou:
- Pois esse comer aqui não é dos melhores que já provei. Acho que esse bode-marcador pode virar um bom churrasco, amanhã.
O padre tentou defender o bode, dizendo que era um “patrimônio” do arraial, não tinha dono, era coisa abençoada por Deus, etc. mas o cangaceiro rangeu os dentes:
- Pois amanhã vai ter uma morte aqui: ou o bode, ou o vigário de Deus. Se o bode passar às cinco, o vigário morre. Se Deus quiser, o bode não passa, e o vigário está livre.
O padre tremia, arregalava os olhos, mas não tinha jeito. Começou a rezar desde aquele momento, pois já via a morte espreitando. Para evitar qualquer desvio da ordem, seis cangaceiros acompanhavam o bode, de longe, para não perder de vista aquele instrumento da vontade divina.
No dia seguinte, o bando ficou do lado de fora da capela; o padre rezou missa; o povo compareceu; até parecia coisa ensaiada. Cangaceiros aprumados, mas sem arruaça, pois não sabiam se Deus ia estar do lado deles, ou não! A decisão estava nas patas do bode. Passou o almoço, o café da tarde, e às cinco horas, Zé Rufino pediu uma garrafa ao bodegueiro e esquentava a goela, palavreando como doutor:
- Xii! Chegou a hora. Agora vamos ver pra que lado vai pender o bom Deus.
O padre tremia. Acreditava em Deus, mas não tinha crença de igual tamanho pelo bode. O miserável iria aparecer, como sempre fez, e isso seria entendido como ordem divina para a estripança do vigário.
Deu cinco, cinco e meia, nada de bode. Ele nunca havia quebrado a rotina, até porque havia sempre um petisco para ele no extremo do arraial.
O cangaceiro chiou, resmungou, soltou o padre que quase enfartava, e comentava:
- Eita padre de sorte. Devia consagrar a igreja ao bode milagreiro.
O bando arrumava as trouxas nos cavalos, para fugir da polícia que vinha do distrito, quando - de repente - eis o bode famoso, entrando no povoado, seguido por uma linda cabrita, jamais vista na região.
Foi assim que o vigário safou-se da morte certa. Na hora de partir, o temível cangaceiro até beijou a mão do padre, para ficar de bem com Deus, e olhava rancoroso para o bode. O certo é que até hoje o povo pergunta: quem atrasou o bode? Foi Deus, para salvar o vigário, ou foi a cabrita que, por acaso, surgiu na região?
Publicado no Be 86
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