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O carneiro no divã

- 19/01/2013

Era uma bela fazenda deixada pelo marido para a viúva que, agora, morava com Lurdinha, uma moça acompanhante e mais a cozinheira. A viúva gostava de animais e a moça gostava de tocar piano. Havia um carneiro grandalhão, meio desajeitado, mas altamente carinhoso com a empregada e com a babá do vizinho. Ah! Ele também gostava muito de ... música. Nem bem ouvia os primeiros acordes saídos das mãos de Lurdinha e ele já ia se aproximando, respeitosamente. Achegava-se ao piano, deitava e fingia dormir, ouvindo os sons maravilhosos que flutuavam na sala grande. Era sempre a “sua” música e todos podiam dizer que havia um claro sorriso em sua boca.

Passados uns tempo, sem qualquer explicação, o carneiro começou a atacar, furiosamente, a cozinheira e também a babá do vizinho. Antes, ele achava que a cozinheira e a babá eram dois xodós, mas agora parece que tinham virado o capeta! O carneirão só queria saber mesmo da moça do piano. Ora, um animal desse tamanho, furioso dentro de uma sala, não é coisa boa para os móveis tão antigos! A viúva, tristemente, ficou de coração apertado.

O comportamento do carneiro, porém, ficava ainda pior e virou caso de psiquiatra. Era preciso chamar um médico para explicar essa estranha reviravolta na vida do ex-manso e ex-carinhoso animal.

Numa manhã, chegou o médico para ver o furioso perto do piano. Era apenas uma pessoa a mais; um novo estranho para o carneiro que, num relance, já não gostou do que viu. Franziu a testa, para mostrar que não tinha boas intenções com o intruso. O médico, um veterinário, pegou a maleta e foi se aproximando, mostrando que não tinha medo de cara-feia, mas o bruto escavou o chão e partiu para cima do doutor que escapuliu pela porta, rapidamente trancada pela empregada.

Em segundo tentativa, bem protegido pelo divã, o médico analisou o tamanho do bruto e viu que não dava para encarar. Era preciso usar a psicologia própria dos carneiros.

Começou ouvindo ouvido o relatório completo dos muitos ataques e cenas incompreensíveis. Pediu, então, para a moça sentar-se e começar a dedilhar o piano. Aconteceu o óbvio: o carneiro sorriu e logo se aconchegou no lugar de sempre, para ouvir a sublime melodia. Afinal, estava sozinho na sala.

De longe, o médico tudo observava. Pegou um punhado de ração e mandou colocar perto do carneiro que recebeu com satisfação. O médico anotou: bons movimentos, olhos sadios, esticava as patas, balançava o rabo, torcia o pescoço, os olhos vasculhavam o ambiente, comeu bem, ouvia bem. Não tinha nada doendo. A fisionomia era de calma angelical, nada de capeta por perto. Depois de bem observado, o doutor chegou a um diagnóstico:

- Não é raiva! É apenas brabeza. Ou espírito-ruim. Doença zero!

Pensou e deu a ordem:

- Agora é hora de testar os reflexos psicológicos.  Pediu para a empregada entrar no recinto. O carneirão ergueu a cabeça diante da intrusão sem justa causa, perturbando a musicalidade do recinto. A empregada foi se achegando e o carneiro foi se arrepiando, o costado tremia, os olhos foram se arregalando, quando o acorde chegou ao si bemol, a velha senhora saiu correndo perseguida pelo carneiro, conseguindo escapulir pela porta salvadora.

- Ah! doutor, não volto mais lá, nunca mais!

O médico precisava pingar os “is” e pediu para a babá do vizinho entrar na sala. O carneiro, que já havia se deitado, novamente ergueu o pescoço, aprumou o olhar valentão, ajeitou a pata para dar o bote e saiu em perseguição da pobre coitada que logo desapareceu pela porta da salvação.

- Esse bicho está mesmo com o diabo!

O médico coçou a orelha, ficou interessado e perguntou:

- O bicho está é cheio de razão. O que poderia ter provocado esse esquentamento todo? Essa fervura bem apanhada?

A babá respondeu, timidamente:

- Acho que foi no dia em que eu vim visitar e trouxe o Michel...

- Que raio de Michel é esse?

- É um outro carneirinho, bem novinho.

- Pois vá buscar o tal Michel, para entrar no teste.

A babá foi e voltou, trazendo o fofinho no colo. Era uma miniatura enfeitada com coleira e lacinho. O próprio médico resolveu desafiar o carneirão, entrando na sala com o fofinho, mas nem teve muito tempo, pois o valentão empinou-se bem mais que antes, com os olhos esbugalhados pelo ódio, desembestando para cima do doutor que, já sabendo, estava bem pertinho da porta. Agora, o bruto não voltou para o piano. Ficou por ali, perto da porta, pronto para um novo ataque.

- Xii. O carneirão virou bicho, mesmo! Ele viu o cruz-credo, o provocador dessa encrenca toda.

- E vai ter jeito, doutor? - perguntou a proprietária, preocupada com os móveis e com a antiga calma do casarão.

- Claro! - acalmou o veterinário. Para tudo há um jeito, sempre.

O médicou misturou uma ração especial com sedativos fortes. Mandou empurrar para perto do carneirão. O animal estava mesmo com fome, cheio de razão e comeu. Logo depois, estava sonolento, embalado pela boa música do piano, agora num fá sustenido.

- Pronto, o animal está quase curado. Agora é entrar e fazer amizade com ele. E desapareçam com essa miniatura de carneiro, pois o grandão está com ciúme de derreter.

Todos se achegaram, alisaram o animal.

- Como vai ser, daqui para frente, seu doutor?

- Bom, é o seguinte: durante os próximos quatro dias, apliquem o tranquilizante na comida. Aproveitem para se encostar, fazer carinho, coisa e tal. Até a babá do vizinho pode entrar, com roupa nova, sem cheiro do fofinho. O carneiro vai se acostumar.

Saboreando o cafezinho quente na porcelana, o médico deu sua opinião final:

- Eita carneiro esperto! Ouvir piano é só com ele, mesmo. Não quer nenhum concorrente na vizinhança.

 

Adaptado de “O galinhista”, Edson Pereira, Goiânia, 2010, Funape, IPTESP, p. 31)






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