O prefeito inventou uma feira de miúnças e, para dar um ar cultural, havia convidado os três juízes mais importantes, para julgar os animais que, porventura, alguém quisesse colocar na disputa. Nunca havia tido uma peleja como essa e, na hora, surgiu bicho de todo jeito. Era difícil para os juízes escolher um animal no meio daquele amontoado de coisas diferentes. O jeito foi trocar conversas, o tempo todo, na pista, para premiar alguma coisa, pois não podia ser feito um desagrado ao prefeito cheio de boas intenções para com a comunidade.
Terminado o julgamento, em meio a muita cara feia, cochichos, resmungões, empurrões e bate-bocas, todo mundo foi pro boteco, e Damasceno, o falante e Don Juan da região, sentou-se na mesa dos juízes. Aquela estava sendo uma noite memorável para Damasceno, pois jamais sua cidade encravada no sertão tivera visitas tão importantes. Aquilo tudo parecia um sonho. E Zé de Binha puxou a matraca:
- Por que é que vocês, juízes, desclassificaram todos os animais que são os mais caros e preferidos e deram prêmios para os que ninguém quer?
Os três correram os olhos pela redondeza e viram que a pergunta era de todo mundo, pois os olhos estavam arregalados, querendo ouvir a resposta.
- Bom - atalhou o juiz gordão - é que a gente não julga para a gente. A gente julga para a mamãe Zootecnia. Ela é que dá os padrões e diz qual animal é o melhor. A gente só faz cumprir as regras.
- Uai, mas a regra não é premiar o melhor?
- Exatamente. E foi o que fizemos. Pode reparar que os campeões são os mais gordinhos, de melhor musculatura, de provável melhor rendimento de carcaça, de bons aprumos, etc. São os melhores.
- Ôxa, mas vocês premiaram as tranqueiradas! Só deram prêmios para os gordinhos que estavam prontos para vender pro açougue. E refugaram os bichos bons do curral, que vão fazer mais crias. Inverteram tudo!
A conversa foi pegando fogo, ninguém entendia o palavreado dos juízes, que teimavam em colocar a culpa dos erros na tal Dona Zootecnia. De gole em gole, ninguém se entendeu, mas tudo virou festa, até além da meia-noite, quando o jeito foi tentar dormir um pedaço do restinho da noite.
Nem bem Damasceno caiu na cama, se viu numa arena de gladiadores, mas aquilo era uma exposição na própria cidade. A igreja era a mesma, as pessoas eram as mesmas, mas tinha algo diferente na exposição meio esfumaçada. De repente, uma batida forte e começa a entrada solene de vários juízes, vestidos com longas roupas, cheios de empáfia.
- Uai - pensou Damasceno - agora o julgamento de animal ficou mais bonito.
Olhou melhor, no meio da névoa e percebeu que os juízes não eram bem juízes, eram bichos, eram bodes e carneiros. Havia juiz-bode barbudo, juiz-carneiro chifrudo, juiz-bode de óculos, juiz-carneiro com cara de mau, e outros.
O alto falante matraqueava, como em toda exposição, e gritou bem alto:
- O julgamento vai começar. Chegou a hora da verdade.
A multidão correu para tomar seus lugares. Damasceno correu os olhos e viu todo mundo: o prefeito, Dona Zefa, Matilde, Lana, Ernóbio, Leôncio, todo mundo estava num lado da arquibancada. No lado maior estava um mundaréu de bichos: ovelhas, cordeiros, bodes, cabritos, brancos, vermelhos, pretos, uma misturada. Esta incrível multidão queria ver o maior julgamento de todos os tempos.
A comissão era formada por seis juízes e mais seis auxiliares, de jaleco branco, óculos escuros para enfrentar o sol, varinha na mão para mostrar importância, caneta para anotação. Na mesa havia computadores, mais auxiliares. No canto, um telão luminoso, para mostrar a pontuação que seria dada pelos juízes. Julgamento de primeiro mundo!
O alto falante estrilou:
- Que comece o julgamento.
Damasceno ficou empolgado. No primeiro páreo, entraram homens e mulheres comuns para serem julgados pela comissão de bichos. Eram fazendeiros, sitiantes, produtores de caprinos e ovinos. A pontuação flutuou, houve notas boas, notas ruins, pois havia os que se dedicavam ao trabalho e os que espreguiçavam o dia inteiro, deixando os bichos passando fome. No fim, todos ouviram a sentença e voltaram para a penumbra de onde tinham saído.
A segunda leva foi de autoridades, técnicos, políticos, pessoas que promoviam os caprinos e ovinos. A pontuação despencou, foi lá para baixo. A comissão dizia que estas pessoas não tinham interesse nos animais, nem nos donos dos animais. Queriam apenas agradar chefes, para subir na carreira, ou ganhar votos em eleições. Por falta de verdadeira dedicação, pomoviam o ego, mas não os bichos e, então, a nota tinha que ser baixa.
Enfim, havia chegado o ponto alto do julgamento, quando o alto-falante trombeteou:
- E agora, o julgamento dos doutores juízes.
Entrou um lote de juízes, os melhores do Brasil, cuja fama fora conquistada em longa jornada, percorrendo capitais e grandes cidades. Eram homens, mulheres, técnicos, doutores, escritores, antigos e novos.
Um ou outro da comissão cochichava, apontava o dedo, vociferava, erguia o braço, defendendo posições. O julgamento era muito difícil, pois estavam enfrentando a mamãe Zootecnia.
Finalmente, no banco de réu sentou-se o mais famoso juiz do Brasil e logo a pontuação estava no telão, explodindo na plateia:
- Nota ZERO.
Como? O mais famoso tirou nota Zero? Um dos juízes da comissão, um carneiro possante, explicou:
- Este ganhou fama elegendo o animal forte, vistoso como campeão em muitas exposições. Milhares compraram sêmen e só nascia tranqueira. Era sêmen ruim de animal ruim. Este homem só elegeu animal bonito e bom de venda, mas ruim de produção no campo. Fazendeiro que acreditou nele caiu na perdição. Por isso, a nota é zero.
Havia juiz que julgava comprometido com propina, presentes para esposa, etc. Nota Um.
Havia juiz que articulava, fazia jogo de cena, para desaprovar um animal que deveria ser o campeão, só para agradar a autoridade. Nota Dois.
Havia Nota para tudo, pois ali cada juiz era, de fato, julgado pelo que fizera no passado. O julgamento de animais deveria ser um auxílio para os fazendeiros e não uma corrida para premiações, um torneio de vaidades desenfreadas, um vale-tudo com hormônios, remédios poderosos, rações turbinadas, etc.
Boa parte dos juízes ganhou Nota 5. Veio a explicação:
- Esse é um juiz-vai-com-as-outras. Elege animais sem futuro, mas que garante outro julgamento na agenda. É juiz carreirista, que flutua de acordo com a plateia. Ele pensa em agradar todo mundo. Por isso, é festejado onde chega, mas não se preocupa com os animais.
Por fim, depois de dezenas de notas baixas, o alto-falante estrondejou:
- Epa! Está aqui um Nota DEZ.
Todo mundo virou para ver quem era o homem que ganhou nota máxima. Um juiz-bode, de longa barbicha, deu a explicação:
- Este é um homem que só levava sopapos nos julgamentos com os demais. Nunca se importou com tamanho, peso e gordura, mas com os detalhes que exibem um grande guerreiro diante do mundo. Ele teimava em prestigiar animais magricelas, saídos do sertão, cabras leiteiras que enchiam o balde, animais que exibiam detalhes de longa estirpe. Todos os animais que ele escolheu deram lucros nas fazendas. É um juiz de verdade e, por isso, leva Nota DEZ.
O povo ergueu-se, aclamando o juiz verdadeiro, num imenso entusiasmo. Damasceno deu um salto para abraçar o homem e - catapum! - caiu da cama! Só então percebeu que tudo era um sonho. Coçou a cabeça, foi acordando de vez, espinafrando:
- Vixe, que besteira! Onde já se viu os bichos julgando a gente?
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