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As madrinhas

- 03/03/2010

Muita gente acredita que, em um fiapo de tempo, o céu pode se misturar com a Terra; o invisível com o visível. Isso é verdade para todo sertanejo de boa raiz.

Clareava o dia naquela casa pobre, mas feliz, com uma porção de mulheres preocupadas num corre-corre, num me­xe-mexe, pois Dona Zefa tava desembuchando o mais novo rebento bem no momento em o lusco ia vencendo o fusco. Atazanado por aquela desarrumação geral na casa, o marido Biu foi cortar rama pras miunças, pois já era quase hora da soltura. Foi assim que tudo se ajeitava para desassombrar ao mesmo tempo: o dia amanhecia lindo como nunca - com raios cortando as poucas nuvens; as cabras comiam a rama verde - doidas pra saírem do aprisco; Dona Zefa - despejava mais um filho de Deus no mundo.

A parteira deu os tratos e logo passou o menino enrolado em panos para a moça fraca de juízo passear no quintal e, ela, sem ninguém perceber - como seguindo uma ordem dos céus - levou o pacotinho para a porteira, colocou num caixote arranjado, arrastou pro meio da estradinha e ficou olhando de cima, apaixonada:

- Nossa, parece menino Jesus no presépio. Tão lindinho!

Gritaram qualquer coisa e a moça desajuizada saiu apressada para atender, deixando o caixote com o menino no meio da estradinha.

Bem nesse momento, Biu soltou as cabras que saíram em disparada na direção das algarobas, mas - chegando ao caixote - estancaram, num supetão. Havia algo estranho no trajeto das precavidas cabritas! As madrinhas, com seus chocalhos afinados, assumiram seu papel e tomaram a frente, como ca­pitães em plena guerra, para sondar o perigo. A cada tilim-tilim dos chocalhos, o bebê desandava a gritar de alegria, com o maior sorriso que a caatinga já havia visto.

As madrinhas se assustavam, cheiravam aquela estranheza quase nua naquele caixote, no meio da estrada. Ao entenderem o desejo do menino, começaram a tilintar, de propósito, e o menino erguia os bracinhos, como se também ele já tivesse sido uma cabra em outra vida.

O resto das miunças, cabritas e bo­detes acotovelavam-se, rodeavam o caixote, querendo ver o estranho pacote; as madrinhas protegiam e tilintavam; o menino sorria, sorria, sorria a mais não poder. Logo, o curral ficou vazio e todas as miunças formaram um mundaréu atravancado na porteira da casa, num tilintar jamais ouvido num raiar de dia. O menino entendia a alegria dos chocalhos e aquela azáfama de tantos rostos alegres, sorrindo sem parar.

 

 

 

Dentro da casa, de repente, a parteira viu a moça desmiolada sem o nascido e gritou:

- Moça, cadê o menino?

A coitada empertigou-se, assustada, botou a mão na cabeça e apontou a porteirinha branca, onde estava aquele mar de cabras, amontoadas no caixote-menino.

As mulheres entraram em pânico:

- Ai, meu Deus. O menino está mor­to!

Correram todas para o amontoado de animais, aos trancos e barrancos, jogando uma cabra pro lado, uma cabrita pra longe, empurrando tudo até chegar à primeira fila, onde as madrinhas faziam força, segurando a turba curiosa, para não molestar a doce visão. O menino ria, gargalhava a mais não poder, com as mãozinhas tentando agarrar pelo menos um chocalho.

A velha mulher pegou o pacotinho humano, apertou no peito, e disse:

- Ah! Meu Deus, acabou de nascer um bodeiro de primeira. Foi escolhido pelas madrinhas e eu sempre pensei que isso era história de meu avô, que Deus o tenha.

Tudo se acalmou e o menino Tião foi crescendo, sem arredar pé do curral. Todo dia, lá estava cumprimentando as madrinhas, ou qualquer miunça. Logo ce­do, no nascer do sol, e à tardezinha, sempre via o retorno das cabras em fila obediente, seguindo o suave chocalho das madrinhas. Crescia pensando como uma miunça. Era a ordem natural das coisas.

Nasciam cabras, morriam cabras, mas as madrinhas novas e velhas sempre viam Tião com outros olhos, como se ele fosse parte daquele espetáculo chamado vida. Em milhares de vezes lá estava ele, sentado no lajedo, rodeado pe­las madrinhas, contando casos, fazendo perguntas e ouvindo respostas que só ele escutava. Quando desfilava qualquer conhecimento novo, logo afirmava:

- Foi a madrinha Lola que ensinou.

Podia ser Lola, Lilica, Dondoca, Aluena, Frineia - todos os animais tinham nome e todos tinham espírito próprio. Assim Tião foi crescendo, virou rapaz, contava casos de moças, de amor, de ca­bra-macho, e as madrinhas a tudo ouviam. Virou homem feito, substituiu o pai falecido, virou dono da propriedade, casado, com muitas crianças, ganhou dinheiro, aumentou as terras, consertou o curral, aumentou o rebanho, sempre consultando as madrinhas que iam se sucedendo, escolhidas com muita sabedoria. Nunca fazia nada, na vida, sem antes ouvir suas madrinhas.

Muitas vezes, Tião ia para o cercado, ou para a caatinga, junto com as ca­bras, para assuntar a situação, ou para ver as aguadas, os batedores, ou as ervas novas que iam surgindo. Sempre es­tava conversando com as cabras mais antigas e transferindo experiência para as mais novas. Era assim que a sabedoria da caatinga ia se perpetuando e renovando. Tião era o professor para todas as pessoas e, quando algo não sabia, era honesto em dizer:

- Vou consultar as madrinhas, pois elas vão saber.

Já sessentão, Tião era um rico no ser­tão, com cavalo de raça, roupa branca do Seridó, com bode campeão e mui­tas léguas de terra proveitosa, caatinga recheada de capim e bem tratada, onde as cabras tilintavam o dia inteiro.

Em cada amanhecer, lá estava Tião, na porta da casa, olhando aquele mundo de cabras se espalhando pelas algarobas, com o som dos chocalhos nadan­do nos raios quentes do sol.

Tudo na vida, porém, é uma folha que cai, um pavio aceso que se apaga num bafejo do destino, pois se algo nunca para é o relógio de Deus. Foi assim com Tião que, vistoriando o curral, no do­mingo, antes da missa, com a roupa branca, despencou mortinho da silva, só Deus sabe o porquê. Assim foi achado, carregado, pranteado, lavado e perfumado. Ficou o dia inteiro, estendido na sala da casa-grande, recebendo visitas de centenas de conhecidos e autoridades, mas todos percebiam que o sorriso costumeiro havia desaparecido.

O bondoso defunto não combinava com flores, ­velas acesas e murmurinho de rezadeiras. Ele sempre dizia que, no dia final, queria sair da fazenda, em caixão aberto, para respirar o último ar de sua terra tão amada.

À tardezinha, o corpo tinha que ser levado para a capela no povoado, onde seria benzido e encomendado para o enterro ao lado da família. Foi assim que todos puderam ver que, para Deus lá no céu, tudo era uma coisa só, em que os dias e os fatos vão acontecendo, tanto faz se para gente ou para bichos.

Quando a multidão foi saindo pelo portão, com o caixão aberto, as cabras perceberam e vieram em desabalada carreira, abandonando as algarobas, o cocho, atropelando gente, autoridades e padre, em tumulto sem igual. As madrinhas logo tomaram a frente, colocando ordem na confusão; rodearam o caixão, expulsando as pessoas curiosas, só deixando aquelas que estavam com a alça na mão.

E, então, o mundo parou. Tudo foi engolido pelo maior silêncio que o mundo já viu. Todos parados, bocas abertas. Ninguém respirava. O milagre estava no ar. Era um momento sagrado. As bondosas madrinhas, tilintando o chocalho, circulavam ao redor do caixão aberto, em última homenagem. Num da­do instante, todas elas, dezenas, reunidas, bateram forte os chocalhos, numa estridência combinada e, então, aconteceu o milagre: o rosto do Tião carrancudo foi desanuviando e, lentamente, foi desabrochando um sorriso celestial do Tião que estava, de novo, no paraíso.

Os carregadores entenderam o sinal e o caixão foi baixado até o chão, com aquele mundo de cabras ao redor. Os animais continuaram circulando, apro­veitando o último sorriso humano que as ligava aos céus. Era um fiapo de tempo, mas era a ligação entre céu e ter­ra, entre alma de gente e alma de bicho.

Uma eternidade depois, as madrinhas terminaram a cerimônia, cessando o tilintar, abrindo passagem para as pessoas que chegaram e levaram o Tião, agora muito sorridente, para a última morada. Bem longe seguia o féretro, enquanto as madrinhas tilintavam os chocalhos, num triste e último adeus. A parteira mais velha, chorosa, comentava:

- Lá se vai o último bodeiro da Terra. Abençoado pelas madrinhas na nascida e na partida. Tão cedo um outro es­ta terra não verá.

Durante muito tempo, a história foi contada, para mostrar que, às vezes, nem tudo nesta terra era Sodoma e Gomorra. Afinal, existiam locais onde o cho­calho das madrinhas e o sorriso de Tião levavam uma mensagem para o céu.






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