Muita gente acredita que, em um fiapo de tempo, o céu pode se misturar com a Terra; o invisível com o visível. Isso é verdade para todo sertanejo de boa raiz.
Clareava o dia naquela casa pobre, mas feliz, com uma porção de mulheres preocupadas num corre-corre, num mexe-mexe, pois Dona Zefa tava desembuchando o mais novo rebento bem no momento em o lusco ia vencendo o fusco. Atazanado por aquela desarrumação geral na casa, o marido Biu foi cortar rama pras miunças, pois já era quase hora da soltura. Foi assim que tudo se ajeitava para desassombrar ao mesmo tempo: o dia amanhecia lindo como nunca - com raios cortando as poucas nuvens; as cabras comiam a rama verde - doidas pra saírem do aprisco; Dona Zefa - despejava mais um filho de Deus no mundo.
A parteira deu os tratos e logo passou o menino enrolado em panos para a moça fraca de juízo passear no quintal e, ela, sem ninguém perceber - como seguindo uma ordem dos céus - levou o pacotinho para a porteira, colocou num caixote arranjado, arrastou pro meio da estradinha e ficou olhando de cima, apaixonada:
- Nossa, parece menino Jesus no presépio. Tão lindinho!
Gritaram qualquer coisa e a moça desajuizada saiu apressada para atender, deixando o caixote com o menino no meio da estradinha.
Bem nesse momento, Biu soltou as cabras que saíram em disparada na direção das algarobas, mas - chegando ao caixote - estancaram, num supetão. Havia algo estranho no trajeto das precavidas cabritas! As madrinhas, com seus chocalhos afinados, assumiram seu papel e tomaram a frente, como capitães em plena guerra, para sondar o perigo. A cada tilim-tilim dos chocalhos, o bebê desandava a gritar de alegria, com o maior sorriso que a caatinga já havia visto.
As madrinhas se assustavam, cheiravam aquela estranheza quase nua naquele caixote, no meio da estrada. Ao entenderem o desejo do menino, começaram a tilintar, de propósito, e o menino erguia os bracinhos, como se também ele já tivesse sido uma cabra em outra vida.
O resto das miunças, cabritas e bodetes acotovelavam-se, rodeavam o caixote, querendo ver o estranho pacote; as madrinhas protegiam e tilintavam; o menino sorria, sorria, sorria a mais não poder. Logo, o curral ficou vazio e todas as miunças formaram um mundaréu atravancado na porteira da casa, num tilintar jamais ouvido num raiar de dia. O menino entendia a alegria dos chocalhos e aquela azáfama de tantos rostos alegres, sorrindo sem parar.
Dentro da casa, de repente, a parteira viu a moça desmiolada sem o nascido e gritou:
- Moça, cadê o menino?
A coitada empertigou-se, assustada, botou a mão na cabeça e apontou a porteirinha branca, onde estava aquele mar de cabras, amontoadas no caixote-menino.
As mulheres entraram em pânico:
- Ai, meu Deus. O menino está morto!
Correram todas para o amontoado de animais, aos trancos e barrancos, jogando uma cabra pro lado, uma cabrita pra longe, empurrando tudo até chegar à primeira fila, onde as madrinhas faziam força, segurando a turba curiosa, para não molestar a doce visão. O menino ria, gargalhava a mais não poder, com as mãozinhas tentando agarrar pelo menos um chocalho.
A velha mulher pegou o pacotinho humano, apertou no peito, e disse:
- Ah! Meu Deus, acabou de nascer um bodeiro de primeira. Foi escolhido pelas madrinhas e eu sempre pensei que isso era história de meu avô, que Deus o tenha.
Tudo se acalmou e o menino Tião foi crescendo, sem arredar pé do curral. Todo dia, lá estava cumprimentando as madrinhas, ou qualquer miunça. Logo cedo, no nascer do sol, e à tardezinha, sempre via o retorno das cabras em fila obediente, seguindo o suave chocalho das madrinhas. Crescia pensando como uma miunça. Era a ordem natural das coisas.
Nasciam cabras, morriam cabras, mas as madrinhas novas e velhas sempre viam Tião com outros olhos, como se ele fosse parte daquele espetáculo chamado vida. Em milhares de vezes lá estava ele, sentado no lajedo, rodeado pelas madrinhas, contando casos, fazendo perguntas e ouvindo respostas que só ele escutava. Quando desfilava qualquer conhecimento novo, logo afirmava:
- Foi a madrinha Lola que ensinou.
Podia ser Lola, Lilica, Dondoca, Aluena, Frineia - todos os animais tinham nome e todos tinham espírito próprio. Assim Tião foi crescendo, virou rapaz, contava casos de moças, de amor, de cabra-macho, e as madrinhas a tudo ouviam. Virou homem feito, substituiu o pai falecido, virou dono da propriedade, casado, com muitas crianças, ganhou dinheiro, aumentou as terras, consertou o curral, aumentou o rebanho, sempre consultando as madrinhas que iam se sucedendo, escolhidas com muita sabedoria. Nunca fazia nada, na vida, sem antes ouvir suas madrinhas.
Muitas vezes, Tião ia para o cercado, ou para a caatinga, junto com as cabras, para assuntar a situação, ou para ver as aguadas, os batedores, ou as ervas novas que iam surgindo. Sempre estava conversando com as cabras mais antigas e transferindo experiência para as mais novas. Era assim que a sabedoria da caatinga ia se perpetuando e renovando. Tião era o professor para todas as pessoas e, quando algo não sabia, era honesto em dizer:
- Vou consultar as madrinhas, pois elas vão saber.
Já sessentão, Tião era um rico no sertão, com cavalo de raça, roupa branca do Seridó, com bode campeão e muitas léguas de terra proveitosa, caatinga recheada de capim e bem tratada, onde as cabras tilintavam o dia inteiro.
Em cada amanhecer, lá estava Tião, na porta da casa, olhando aquele mundo de cabras se espalhando pelas algarobas, com o som dos chocalhos nadando nos raios quentes do sol.
Tudo na vida, porém, é uma folha que cai, um pavio aceso que se apaga num bafejo do destino, pois se algo nunca para é o relógio de Deus. Foi assim com Tião que, vistoriando o curral, no domingo, antes da missa, com a roupa branca, despencou mortinho da silva, só Deus sabe o porquê. Assim foi achado, carregado, pranteado, lavado e perfumado. Ficou o dia inteiro, estendido na sala da casa-grande, recebendo visitas de centenas de conhecidos e autoridades, mas todos percebiam que o sorriso costumeiro havia desaparecido.
O bondoso defunto não combinava com flores, velas acesas e murmurinho de rezadeiras. Ele sempre dizia que, no dia final, queria sair da fazenda, em caixão aberto, para respirar o último ar de sua terra tão amada.
À tardezinha, o corpo tinha que ser levado para a capela no povoado, onde seria benzido e encomendado para o enterro ao lado da família. Foi assim que todos puderam ver que, para Deus lá no céu, tudo era uma coisa só, em que os dias e os fatos vão acontecendo, tanto faz se para gente ou para bichos.
Quando a multidão foi saindo pelo portão, com o caixão aberto, as cabras perceberam e vieram em desabalada carreira, abandonando as algarobas, o cocho, atropelando gente, autoridades e padre, em tumulto sem igual. As madrinhas logo tomaram a frente, colocando ordem na confusão; rodearam o caixão, expulsando as pessoas curiosas, só deixando aquelas que estavam com a alça na mão.
E, então, o mundo parou. Tudo foi engolido pelo maior silêncio que o mundo já viu. Todos parados, bocas abertas. Ninguém respirava. O milagre estava no ar. Era um momento sagrado. As bondosas madrinhas, tilintando o chocalho, circulavam ao redor do caixão aberto, em última homenagem. Num dado instante, todas elas, dezenas, reunidas, bateram forte os chocalhos, numa estridência combinada e, então, aconteceu o milagre: o rosto do Tião carrancudo foi desanuviando e, lentamente, foi desabrochando um sorriso celestial do Tião que estava, de novo, no paraíso.
Os carregadores entenderam o sinal e o caixão foi baixado até o chão, com aquele mundo de cabras ao redor. Os animais continuaram circulando, aproveitando o último sorriso humano que as ligava aos céus. Era um fiapo de tempo, mas era a ligação entre céu e terra, entre alma de gente e alma de bicho.
Uma eternidade depois, as madrinhas terminaram a cerimônia, cessando o tilintar, abrindo passagem para as pessoas que chegaram e levaram o Tião, agora muito sorridente, para a última morada. Bem longe seguia o féretro, enquanto as madrinhas tilintavam os chocalhos, num triste e último adeus. A parteira mais velha, chorosa, comentava:
- Lá se vai o último bodeiro da Terra. Abençoado pelas madrinhas na nascida e na partida. Tão cedo um outro esta terra não verá.
Durante muito tempo, a história foi contada, para mostrar que, às vezes, nem tudo nesta terra era Sodoma e Gomorra. Afinal, existiam locais onde o chocalho das madrinhas e o sorriso de Tião levavam uma mensagem para o céu.
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