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Matérias



O dilúvio no sertão

- 04/11/2009

De repente, o coronel Salus­tino desandou a dar ordem para os vaqueiros:

- Subam na serra, juntem uma ru­ma de cabras e guarde no curral, pois vem chegando uma tempestade das bravas.

Foi uma correria danada, recolhendo cabras que jamais haviam descido até os currais, na parte baixa da fazenda.

Depois, todos esperaram a chuva­rada que não chegava. Não havia nem sinal, mas o coronel conti­nuava confian­te, com o telefone celular sempre no ou­vido:

- Está aqui, no aparelhinho, estou ouvindo. Diz que vai ser uma boa chu­va­da.

No dia seguinte, não contente com as cabras no curral, ouviu o aparelhinho e esbravejou:

- Gente, a chuva que vem é medonha, mesmo. Subam na serra e juntem mais cabras porque senão vai ser um deus-me-acuda.

Lá se foram mais três dias enso­la­ra­dos, de poucas nuvens, juntando cabras e mais cabras que jamais haviam sido molestadas e tangidas, para baixo, numa dificuldade de estalar miolo.

Na noitinha, alguns vaqueiros foram se achegando, dizendo:

- Coronel, isso parece mangação! Não vai ter chuva, não? Já tem muito bicho no curral.

Teimoso, o coronel Salustino não se dá por vencido. Pega o aparelhinho, escuta o locutor explicando:

- As previsões indicam um chuvaréu como nunca se viu.

O coronel, crente na tecnologia, ribomba a ordem:

- Vem chuva, sim, e vem com cara de cão. Vamos todos pra cima da serra, pra juntar o que puder das cabras, pra evitar que bicho morra no aguaceiro.

E assim passaram-se mais três dias, entre lajedos, espinhos, na ­incrível tarefa de juntar cabras, bodes, cabritos, que sempre foram livres, para formar ma­gotes e descer para os currais seguros na fazenda. O céu, risonho, tinindo de azul, lá em cima, sem cara de chuva.

Na noitinha, de novo, o coronel escuta o aparelhinho, com o “homem do tempo” explicando tudo:

- Minha gente, se prepare, pois o si­nal está muito forte. A chuva está na porta. Parece que não, mas está. Podem acreditar. Quem for prevenido, que se cuide. Lembre-se que Noé construiu a arca quando não havia nem sinal de chuva. E choveu um dilúvio, um mar de água que matou todos os infiéis da terra.

Mais uma vez o coronel resolveu acre­ditar, deu ordens, mandou pilar mais carne seca, despachou doze vaqueiros para juntar mais de mil cabras, antes que o mundo se acabasse.

- Vai ser uma chuva de torar açude de milhão, mas minha criação não vai pe­gar, não!

 

 

 

Os currais foram se enchendo, com animais inquietos, doidos para escapulir, já faltando comida para tanta criação. O coronel coçava a cabeça, a chuva precisava chegar logo, senão a cabraria ia dar um problemão.

Mais um dia se passou, com sol las­cando até macambira, e o coronel teve uma ideia genial.

- Vou falar pessoalmente com o “homem do tempo” que fica neste apa­re­lhinho.

Ia ser o encontro da antiga tecno­logia do sertão com a novíssima tecno­logia. Procurou, procurou e, finalmente, encontrou o telefone da emissora. Conseguiu descobrir o “homem do tempo” e foi logo perguntando:

- Meu amigo, minha credulice está no fim. Já estou preparado para enfrentar uma chuva da moléstia, mas não vejo sinal dela. Você, por acaso, tem ­certeza se vai, ou não, chover no sertão?

Do outro lado, veio a voz num ­treme-treme, tentando explicar:

- Claro que tenho. Nossa previsão é feita por satélite.  Não tem erro, vai ­chover muito no sertão.

O coronel se fez de difícil e ­resolveu continuar o interrogatório:

- Seu satélite já enxergou muita água em algum lugar?

- Não.

Já enxergou nuvens de chuva?

- Não.

- Já enxergou passarinho mudando ninho?

- Não.

- Já enxergou algum jumento suando?

- Não.

Então, como você está dizendo que vai chover o céu inteiro na cabeça da gen­te?

 - É porque, nos últimos dias temos observado sinais da sabedoria do povo do sertão.

- Que sabedoria, homem? E o tal satélite?

- O satélite enxerga tudo e os computadores dizem que os sertanejos estão indicando que está chegando um enorme temporal.

- E como você sabe que vai ser um temporal dos diabos?

- É porque uma grande fazenda do sertão está recolhendo as cabras que viviam na serra. Todo dia estão descendo mais e mais cabras. Já desceram mi­lha­res de cabras selvagens. Isso é sinal de que está chegando uma grande tempestade. Pode ser a maior tempestade já vista no sertão. Vai ser um dilúvio, po­de acreditar.

Raivoso, o coronel rebentou o apare­lhinho no lajedo e espumando de raiva, esbravejou:

- Soltem as cabras, porque agora Deus mudou a ordem. Não vai ter mais dilúvio no sertão. É pra todo mundo continuar bem vivo nesta terra.

Milhares de cabras festejaram, ca­briolando rumo à liberdade de sempre, no alto da serra que se perdia no horizonte teimoso em seu azul milenar.






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