O doutor Leôncio era um juiz de Direito muito direito; jamais alguém poderia apontar uma falha sua. Não atrasava um minuto ao serviço e atendia a todos sempre recitando um verso bíblico. Quando chegava o meio-dia todo mundo já sabia: doutor Leôncio ajeitava as coisas e ia para o restaurante do velho primo Cazuza, onde havia o melhor guisado de cabrito de toda região.
Na saída, lá estava o velho cão de longas peripécias do passado. Esse amor havia começado quando o juiz encontrou o cachorro na rua: era um perdido na vida, acabrunhado, ensimesmado, desconfiado, magro, sem graça, mas tinha uns olhos muito expressivos:
- Eita, parece até uma olhada de juiz-de-direito! - exclamou o doutor.
O certo é que o estropiado acabou virando estimação, ganhou o nome de Lebréu, engordou, recebeu pelagem nova, lustrosa, perdeu o medo, os olhos brilhavam mais. A dupla, juiz e Lebréu, era uma constante na vida da cidade pacata, nas feiras, nos bares, na igreja. Lebréu não era mais um cão, era agora o cão-do-doutor.
Acontece que Lebréu era sempre malvisto por Cazuza, pois - antes do advento do juiz - era um maltrapilho pulguento, ladrão de restos no fundo do restaurante. Já havia sido expulso inúmeras vezes, mas o estômago apertado o fazia voltar, sempre ao mesmo ponto. A luta eterna entre Cazuza e Lebréu não teria fim, se não fosse a chegada do juiz, por mero acaso.
Quando percebeu os amores do douto magistrado, Cazuza entendeu que era bom afirmar quem mandava em seu pedaço e botou uma placa perto da porta: “Proibida entrada de cachorros”.
O juiz entendeu o recado e, como bom magistrado, evitou querelanças, preferindo a parte do guisado de cabrito, receita do avô passada para o pai e, agora, em mãos de Cazuza. Qualquer mal entendido e, pronto!, o guisado poderia sair apimentado!
Com imenso prazer, Cazuza recebia o magistrado e, prontamente, batia a porta na cara do cachorro que, sem recursos jurídicos, ficava amontoado, esperando o restinho que o doutor logo iria trazer. Muitas vezes, enquanto o juiz se deliciava no prato, Cazuza aproveitava e saía para atazanar o pobre cão, pisando no rabo, puxando orelhas, jogando água quente. Tentava descontar a ira do passado.
O tempo passou e, como tudo no mundo, o juiz chegou ao final. No leito de morte, chamou o único parente que tinha, o primo Cazuza, para lhe levar um último prato do fabuloso guisado de cabrito. Comunicou:
- Velho Cazuza, seu restaurante jamais será o mesmo se não tiver alguém para receber o trato especial que você sempre me deu. Aquela mesa bem colocada, toalhas limpas, talheres de prata, vinho especial. Acho que você deveria continuar com essa tradição.
Cazuza não entendeu direito, mas o juiz explicou:
- Tenho um dinheiro guardado e penso em deixar tudo pra vosmecê. Desde que mantenha a tradição do guisado de cabrito. Você aceita ser meu herdeiro?
Ora, ora, ora! Era dinheiro caindo do céu, de graça. Cazuza nem pestanejou, topou na hora. A notícia correu pela cidade: Cazuza havia enricado.
O juiz partiu pra vida melhor, Cazuza esteve no velório, no enterro, na missa de sétimo-dia, sempre muito prestativo, aproveitando para pisar no rabo do cachorro que não entendia o que estava acontecendo.
No dia certo, o novo escrivão foi até o restaurante e apresentou o Testamento do doutor Leôncio:
- todos os bens ficam para o primo Cazuza...
O escrivão fez uma pausa, não entendendo o que estava lendo, esfregou os olhos, causando aflição em Cazuza que já se via metendo a mão na grana. Continuou:
- ... desde que ao estimado Lebréu seja garantido o direito de almoçar, todos os dias, o mesmo guisado de cabrito, servido na mesma mesa, com o mesmo requinte, pelo proprietário, no restaurante, podendo qualquer fiscal da Justiça dar como finita herança, caso o cão venha a sofrer qualquer danação ou amofinamento.
Foi assim que surgiu a placa “Mesa do Dr. Leôncio”, indicando o lugar, sempre bem arrumado, com toalhas novas, cristais, um bom litro de vinho, talheres ricos de fazer inveja. Ao lado da cadeira, Cazuza construiu um banco largo, onde era servido, na hora do almoço, uma travessa de prata fumegante, apresentada alegremente pelo próprio Cazuza, com o famoso guisado de cabrito que Lebréu, o cachorro do doutor, iria saborear pelo resto de seus dias.
Muitos turistas abririam um imenso sorriso por ver tanta consideração por um velho cachorro, mas Cazuza disfarçava e fazia de conta que isso era a coisa mais comum do mundo.
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