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O guisado de cabrito

- 04/04/2009

O doutor Leôncio era um juiz de Direito muito direito; jamais alguém poderia apontar uma falha sua. Não atrasa­va um minuto ao serviço e atendia a todos sempre recitando um verso bíblico. Quando chegava o meio-dia todo ­mundo já sabia: doutor Leôncio ajeitava as coisas e ia para o restaurante do velho primo Cazuza, onde havia o melhor ­guisado de cabrito de toda região.

Na saída, lá estava o velho cão de lon­gas peripécias do passado. Esse amor havia começado quando o juiz encontrou o cachorro na rua: era um perdido na vida, acabrunhado, ­ensimesmado, desconfiado, magro, sem graça, mas tinha uns olhos muito expressivos:

- Eita, parece até uma olhada de juiz-de-direito! - exclamou o doutor.

O certo é que o estropiado acabou virando estimação, ganhou o nome de Le­bréu, engordou, recebeu pelagem no­va, lustrosa, perdeu o medo, os olhos bri­lhavam mais. A dupla, juiz e Lebréu, era uma constante na vida da cidade pacata, nas feiras, nos bares, na igreja. Lebréu não era mais um cão, era agora o cão-do-doutor.

Acontece que Lebréu era sempre mal­visto por Cazuza, pois - antes do advento do juiz - era um maltrapilho pul­guento, ladrão de restos no fundo do restaurante. Já havia sido expulso ­inúmeras vezes, mas o estômago apertado o fazia voltar, sempre ao mesmo ponto. A luta eterna entre Cazuza e Lebréu não te­ria fim, se não fosse a chegada do juiz, por mero acaso.

Quando percebeu os amores do douto magistrado, Cazuza entendeu que era bom afirmar quem mandava em seu pedaço e botou uma placa perto da porta: “Proibida entrada de cachorros”.

O juiz entendeu o recado e, como bom magistrado, evitou querelanças, pre­ferindo a parte do guisado de cabrito, receita do avô passada para o pai e, agora, em mãos de Cazuza. Qualquer mal entendido e, pronto!, o guisado poderia sair apimentado!

Com imenso prazer, Cazuza recebia o magistrado e, prontamente, batia a porta na cara do cachorro que, sem re­cursos jurídicos, ficava amontoado, es­perando o restinho que o doutor logo iria trazer. Muitas vezes, enquanto o juiz se deliciava no prato, Cazuza aproveitava e saía para atazanar o pobre cão, pisando no rabo, puxando orelhas, jogando água quente. Tentava descontar a ira do passado.

O tempo passou e, como tudo no mun­do, o juiz chegou ao final. No leito de morte, chamou o único parente que tinha, o primo Cazuza, para lhe levar um último prato do fabuloso guisado de cabrito. Comunicou:

- Velho Cazuza, seu restaurante ­jamais será o mesmo se não tiver alguém para receber o trato especial que você sempre me deu. Aquela mesa bem colocada, toalhas limpas, talheres de pra­ta, vinho especial. Acho que você de­veria continuar com essa tradição.

Cazuza não entendeu direito, mas o juiz explicou:

- Tenho um dinheiro guardado e penso em deixar tudo pra vosmecê. Desde que mantenha a tradição do guisado de cabrito. Você aceita ser meu herdeiro?

Ora, ora, ora! Era dinheiro caindo do céu, de graça. Cazuza nem pestanejou, topou na hora. A notícia correu pela cidade: Cazuza havia enricado.

 

 

 

O juiz partiu pra vida melhor, Cazuza esteve no velório, no enterro, na missa de sétimo-dia, sempre muito prestativo, apro­veitando para pisar no rabo do cachorro que não entendia o que estava acontecendo.

No dia certo, o novo escrivão foi até o restaurante e apresentou o Testamento do doutor Leôncio:

- todos os bens ficam para o primo Cazuza...

O escrivão fez uma pausa, não entendendo o que estava lendo, esfregou os olhos, causando aflição em Cazuza que já se via metendo a mão na grana. Continuou:

- ... desde que ao estimado Lebréu seja garantido o direito de almoçar, todos os dias, o mesmo guisado de cabrito, servido na mesma mesa, com o mesmo requinte, pelo proprietário, no restaurante, podendo qualquer fiscal da Justiça dar como finita herança, caso o cão ve­nha a sofrer qualquer danação ou amofinamento.

Foi assim que surgiu a placa “Mesa do Dr. Leôncio”, indicando o lugar, sempre bem arrumado, com toalhas novas, cristais, um bom litro de vinho, talheres ricos de fazer inveja. Ao lado da ­cadeira, Cazuza construiu um banco largo, onde era servido, na hora do almoço, uma travessa de prata fumegante, apresentada alegremente pelo próprio Cazuza, com o famoso guisado de cabrito que Lebréu, o cachorro do doutor, iria saborear pelo resto de seus dias.

Muitos turistas abririam um imenso sorriso por ver tanta consideração por um velho cachorro, mas Cazuza disfarçava e fazia de conta que isso era a coisa mais comum do mundo.






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